Imagens do fim do mundo em seus regimes ético-estéticos:
inimizade, discursos de ódio, micropolítica e o contra-ataque da diversidade nas redes sociais
Christine Mello (PUC-SP/UERJ)
Este estudo integra a pesquisa Por outras imagens do mundo: arte, mídia e política desenvolvida a partir da Bolsa PAPD (2022-2023) concedida pela Fundação Carlos Chagas/FAPERJ, sob a forma de intercâmbio interinstitucional entre a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, em seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (Linha de Pesquisa Regimes de sentido nos processos comunicacionais) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, em seu Programa de Pós-Graduação em Artes/PPGArtes (Linha de Pesquisa Arte, imagem e escrita), sob a forma de Pós-Doutorado, com supervisão da professora Sheila Cabo Geraldo.
Trata-se de uma investigação interdisciplinar entre os campos da comunicação (Teoria da mídia) e da arte (Teoria da arte e Crítica de arte) por meio de intersecções com estudos das imagens, em suas implicações políticas. A pesquisa transita em torno a problemas relacionados com a nossa condição no mundo globalizado, tendo como ênfase a análise de práticas artísticas e midiáticas articuladas com plataformas em rede.
Diante de um contexto histórico relacionado ao globalitarismo, como pensa Milton Santos (2007) e ao capitalismo de vigilância, em Shoshana Zuboff (2021), que colocam em xeque a democracia, buscamos pensar também as dimensões de fim do mundo em suas relações com o Antropoceno, com a crise da sustentabilidade e da biodiversidade, que colocam em xeque a forma como habitamos o mundo. Este é o ponto de partida de Ailton Krenak, em seu Ideias para adiar o fim do mundo (2019) assim como Bruno Latour, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, ao questionarem “Há mundo por vir?” (2017). Nesse contexto, encontramos um estado de crise, um alarme.
No entanto, é a partir do pensamento de Achille Mbembe, em seu Políticas da inimizade (2020), que iremos observar, em especial nos ambientes das mídias sociais, aspectos das imagens do fim do mundo que indicam o fim do projeto humanista ocidental. Estes aspectos nos permitem refletir sobre o avanço do autoritarismo, do racismo e da cultura do ódio no século 21. Com Mbembe, buscaremos questionar: por que as imagens em rede não nos entusiasmam? Por que elas incitam discursos de ódio (Luiz Valério Trindade, 2022) ao mesmo tempo que vão sendo esquecidas e apagadas em favor de imagens globalizantes, que o capitalismo de vigilância (Zuboff ,2021) quer que consumamos por meio da Inteligência Artificial (IA) e da lógica algorítmica da dadosfera (Giselle Beiguelman, 2020)?
Nesse âmbito, os estudos incluem a análise de imagens por meio de seus regimes éticos (Jacques Rancière, 2005) nos usos que têm, nos efeitos que induzem, em suas performatividades (César Baio, 2015) e micropolíticas (Suely Rolnik, 2016), com o objetivo tanto de assinalar seus valores mortíferos (como imagens de fim de mundo) e vitais (como inscrição de outros mundos) quanto observar a esfera crítica que as práticas artísticas, o jornalismo independente, os coletivos audiovisuais, as comunidades indígenas, feministas e LGBTQ+, entre outras, produzem em prol de sua diversidade, como ato de imaginar a existência de maneira diferente, como o reconhecimento recíproco da vulnerabilidade, como inscrição de outras imagens do mundo.
Tendo em vista tais circunstâncias, o estudo tem como objetivo produzir análises críticas tendo como ponto de partida a observação de práticas propostas por artistas como Giselle Beiguelman (Odiolândia, 2017) e Daniel Lima (Terra de gigantes, 2023), como bases estruturantes para refletir, a partir delas, as singularidades dos interesses dos estudantes, relacionadas, no caso, a um corpo maior de artistas, coletivos e manifestações culturais apresentadas na exposição INTERSECÇÕES – Negros(as), indígenas e periféricos(as) na cidade de São Paulo (em exibição no Solar da Marquesa de Santos e na Casa da Imagem, que integram o Museu da Cidade de São Paulo). Com curadoria de Adriana Barbosa, Nabor Jr. e Eleilson Leite, a mostra apresenta um conjunto de movimentos culturais, artistas, processos e encontros que atuam na interseccionalidade histórica e socialmente imposta às populações negra, periférica, indígena e LGBTQIA+ e também revelam como as transversalidades que os unem fomentam a base da cultura na capital, além de fornecer elementos não somente para a celebração coletiva, como para a possibilidade de convivência em uma sociedade onde o racismo, o sexismo e a homofobia são inseparáveis.
No caso, seremos recebidos pelo sociólogo, crítico e teórico em fotografia, Mestre em Comunicação e Semiótica, Henrique Siqueira, coordenador de curadoria do Museu da Cidade de São Paulo, que nos proporcionará ativação da exposição organizada pelo Museu, por meio de conversa, visita guiada e debates. Esta atividade contempla atividade extensionista sob a forma de atividade externa.
1. Globalitarismo em Milton Santos
O pensador Milton Santos [1926-2001] considera a existência de três mundos inter-relacionados entre si a partir da compreensão do que é a globalização. Para ele, há o mundo que percebemos, ao modo de uma fabulação, constituído pelas forças fantasiosas do capitalismo, no qual somos consumidores. Há o mundo real, no qual a globalização se impõe de maneira hegemônica, como uma fábrica de perversidade, por meio do aumento da desigualdade social. E há o mundo como possibilidade, onde buscamos a construção de uma outra realidade, uma outra globalização.
“Eu chamo a globalização de globalitarismo porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político”. (Santos, 2007, p. 180)
A partir da compreensão de globalização como globalitarismo, tomamos como noção de mundo a coexistência dos três mundos a que se refere Milton Santos: o mundo percebido, o mundo real e o mundo possível. Na intersecção entre eles, Santos destaca a principal estratégia do globalitarismo, que consiste na junção entre a globalização e o totalitarismo como aquilo que dá visibilidade à união entre a tirania da informação e a tirania do dinheiro, e que coloca em xeque a própria ideia de democracia.
Nesse cenário, observamos imagens do fim do mundo como relações entre imagem e política, com o objetivo de assinalar seus valores mortíferos (como imagens de fim de mundo) e vitais (como inscrição de outros mundos). Temos como base, para tanto, a trama interdisciplinar que envolve os campos da arte, da comunicação digital e da sociedade, em que certas práticas artísticas e midiáticas tomam o mundo como possibilidade, nele reivindicando outras imagens.
Consciente da chamada “peste fascista” (Suely Rolnik), que não pode ser separada do racismo estrutural e dos “regimes do inconsciente colonial-patriarcal” (Suely Rolnik) agenciados nas plataformas sociais, observamos que a arte e a mídia independente reagem com potência ética para combater situações que engendram vulnerabilidades e traumas, como as guerras globais e locais, o racismo estrutural, a xenofobia, as desigualdades sociais e a discriminação de gênero.
Tendo como princípio a noção de globalitarismo e a observação do mundo capitalista financerizado que habitamos, encontramos, na crítica à colonialidade, perspectivas teóricas de análise que despertam reflexões para ressignificarmos os campos da imagem, da arte e das mídias em relação aos agenciamentos do mundo na contemporaneidade.
Para o historiador de arte Hans Belting [1935-2023], especialista em teoria da imagem e arte contemporânea, a questão da arte nas mídias “põe-se de resto onde quer que os limites entre comunicação e informação sejam ultrapassados” (Belting, 2006, p. 243). Para ele:
“A pesquisa em arte é realizada hoje num ambiente em que as mídias técnicas das imagens marcam nossa imagem do mundo e nosso conceito de realidade, principalmente quando desconhecemos sua intenção ideológica propriamente dita. O conteúdo de informação que possuem ou apenas afirmam determina em geral a nossa disposição de nos envolver com eles. […]. Imagem e linguagem foram ambas inventadas como sistemas simbólicos com os quais os homens sempre se entenderam no que diz respeito ao mundo”. (Belting, 2006, p. 242)
Nesses tensionamentos, as práticas artísticas e as mídias independentes respondem como um agente ativo capaz de ressignificar o sentido eco-político das imagens do mundo no século 21, como a força vital que anima, reconecta o corpo com o outro e faz vibrar. Oferecem, portanto, experiências diversas de mundo, assim como nosso lugar nele.
2. Capitalismo de vigilância em Shoshana Zuboff
No âmbito das imagens de crise do mundo operadas com os ambientes midiáticos, como a da insegurança pós-11 de setembro de 2001, que gerou, para muitos, a Web 2.0 e o “capitalismo de vigilância” (in Shoshana Zuboff, 2021); a financeira de 2008, que sedimentou o modelo de plataformização e as novas dinâmicas da Web 3.0; a sanitária, a partir do final de 2019, promovida pela pandemia do Covid-19, que acentuou não apenas o negacionismo científico como também polarizações e discursos homogeneizantes nas redes sociais; a mobilização online antirracista “black lives matter” (“vidas negras importam”), em 2020, pela morte do afro-americano George Floyd em uma abordagem policial violenta, dando visibilidade ao racismo estrutural e à persistência do genocídio de vidas negras. Ou seja, encontramos nesses ambientes das mídias sociais “a internet como principal arena de comunicação política” (in Letícia Cesarino, 2022).
Para buscarmos transpassar imagens do fim do mundo face ao globalitarismo sob a forma do “capitalismo de vigilância” (Shoshana Zuboff), em que data-dados, big data e suas imagens em rede implementam o regime de visualidade algorítmica enquanto atuam com a ética do neoliberalismo, produzindo fenômenos como o hiperconsumo em massa, as fake news e os discursos de ódio tão próprios às redes sociais (Luiz Valério de Andrade) refletimos os caminhos da arte e das mídias independentes como a busca pelo “mundo como possibilidade”, onde tais práticas promovem a crítica às arquiteturas de controle das plataformas sociais, rompem com a homogeneização da plataformização da comunicação, operando de forma heteróclita por meio de outros modos de produção de subjetividade. Trata-se de pensar o mundo a partir de suas imagens e de um outro lugar, em sua rede de relações controversas entre arte, mídia e política.
3. Crise planetária ambiental
Se para muitos imaginar o fim do mundo diz respeito a imagens apocalípticas, muitas vezes associadas ao Antropoceno, aqui articulamos tais dimensões caóticas com imagens em rede que implementam o regime de visualidade algorítmica operada por dados e que atuam com valores mortíferos, produzindo imagens de fim do mundo amplamente disseminadas nas redes sociais, como as apresentadas logo abaixo:
http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/entrevista-bruno-latour-filosofo-e-antropologo/
Para pensar imagens do fim do mundo, não se trata de abordar o apocalipse bíblico, mas de compreender que, em nossa condição atual, imaginar mundos, pensar no porvir, no futuro, exige a revisão dos modos de existência. Significa, portanto, como analisa Bruno Latour na apresentação do livro de Danowski e Viveiros de Castro (2017, n.p), um ponto de virada, o único possível, pelo qual é possível começar, a saber, pelo fim. Sob uma perspectiva limítrofe como essa, notamos que os discursos sobre o fim do mundo implicam não apenas o reconhecimento da mudança de mundos, mas a instauração da ideia de uma outra humanidade, de outros sistemas de organização de mundos baseados na diversidade, na mudança dos saberes e dos modos de agir nas relações com o outro.
https://antropofagias.com.br/multinaturalismo/
No século 21, as “imagens do fim do mundo” dizem respeito tanto às crises ambientais, do humanismo e da modernidade relacionadas ao Antropoceno e ao racismo estrutural quanto ao crescente aumento do autoritarismo, guerras, discriminação de gênero, desigualdade social, fome, destruição e morte em escala global, que dão a ver sinais de exaustão do que compreendemos por mundo.
No contexto da crise planetária ambiental, Ailton Krenak pontua que somos convocados a integrar um tipo de “humanidade zumbi” (Krenak, 2019, p. 26) que não tolera a fruição de vida em sua diversidade. É uma espécie de humanidade que se quer homogênea, na qual o consumo substitui a cidadania, que subtrai a capacidade imaginativa e de existência em sua pluralidade, que tanto “tira nossa alegria de estar vivos” (Krenak, 2019, p. 33) quanto limita nossa capacidade de conviver com outros mundos. Para ele, adiar o fim do mundo significa “expandir a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais” (Krenak, 2019, p. 31).
4. Políticas da inimizade em Achille Mbembe
Ao pensarmos nas “políticas da inimizade” (in Achille Mbembe) e suas “imagens do fim do mundo” (aqui, no caso, referentes às imagens em rede), não se trata de abordar o apocalipse bíblico, mas de compreender que, em nossa condição atual, imaginar mundos, pensar no porvir, no futuro, exige a revisão dos modos de existência.
Silvio Almeida indica “Crítica da Razão Negra”, de Achille Mbembe
Achille Mbembe na Culturgest
Políticas da inimizade ou o conforto do Apartheid
Políticas da inimizade – Achille Mbembe
“O Mundo de Joelhos” – Achille Mbembe entrevistado por Iman Rappeti
Tragédia que matou 600 imigrantes: as revelações que põem em dúvida ação de autoridades gregas
Brutalismo do Antropoceno – Entrevista com Achille Mbembe
5. Políticas da inimizade em Odiolândia de Giselle Beiguelman
Imagens que nos interessam nos territórios das plataformas sociais: aquelas que impactam modos de existência pós-digitais. Trata-se de formas de operar as redes segundo a visão do pensador Achille Mbembe [1957] a partir da noção de “políticas da inimizade” (Mbembe, 2020), Estes tipos de imagens de fim de mundo se manifestam em fenômenos como as fake news, as deep fakes, o racismo algorítmico e os discursos de ódio, tão próprios às redes sociais. Para Mbembe:
“Nossa era decididamente se define pela separação, pelos movimentos de ódio, pela hostilidade e, acima de tudo, pela luta contra o inimigo, em decorrência da qual as democracias liberais, já então escorchadas pelas forças do capital, da tecnologia e do militarismo, estão sendo sugadas em um amplo processo de inversão”. (Mbembe, 2020, p. 76)
Quer seja sob a forma da crise ambiental, do racismo estrutural ou da separação e do ódio que permeiam a sociedade, os agenciamentos operados situam a diferença como potenciais ameaças, como o lugar dos inimigos, produzindo confluências entre o espaço on-line, de natureza virtual, e o espaço off-line, de natureza física. A indistinção entre um espaço e outro gera um estado de trânsito e deslocamentos contínuos entre as comunidades, as cidades e as plataformas sociais.
Este é o caso do trabalho Odiolândia (2017) da artista, curadora e pesquisadora Giselle Beiguelman [1962], que toma o episódio das ações da Prefeitura de São Paulo na Cracolândia. Sob a forma de “terra do crack”, é composta, na sua maioria, por dependentes químicos e traficantes em situação de rua. Desde o início dos anos 2000, uma série de políticas públicas vem se implantando, na maior parte das vezes, de forma higienista. Entre elas, o programa social Redenção, criado na gestão de João Dória, no ano de 2017, que contou com violenta intervenção policial.
Para realizar Odiolândia, Beiguelman reúne comentários escritos publicados nas redes sociais sobre as ações de Dória na Cracolândia entre 21 de maio e 9 de junho de 2017, somados ao áudio de vídeos postados na Internet pelos próprios agentes de segurança do Estado. Ela extrai o nome do trabalho a partir do teor de ódio das mensagens postadas. O trabalho é apresentado sob a forma iconoclasta de um vídeo sem imagens, em que “os comentários são apresentados na sua forma bruta, sem correções gramaticais ou adequações de estilo” (Beiguelman, em www.desvirtual.com).
Odiolândia – Giselle Beiguelman
Entre a realidade do espaço físico, tradicional, da cidade de São Paulo e o espaço virtual das redes sociais, Odiolândia apresenta o trânsito entre imagens de fim do mundo constitutivas da vida pública, que entendem os dependentes químicos como “o inimigo”. Como uma ameaça por sua radical alteridade, propiciam, com isso, a exclusão e/ou o extermínio do outro. São imagens de ódio sob a forma de racismo, xenofobia e desigualdade social. Revelam uma sociedade definida pela separação e que, em tais ambientes das plataformas sociais, não se conecta com a diferença. São situações em que predomina o autoritarismo por meio de valores mortíferos e destrutivos em relação ao outro. Nessa direção, para Luiz Valério Trindade:
“Discurso de ódio se caracteriza pelas manifestações de pensamentos, valores e ideologias que visam inferiorizar, desacreditar e humilhar uma pessoa ou um grupo social, em função de características como gênero, orientação sexual, filiação religiosa, raça, lugar de origem ou classe. Tais discursos podem ser manifestados verbalmente ou por escrito, como tem sido cada vez mais frequente nas plataformas de redes sociais. Sendo assim, é possível compreender que discursos de cunho racistas veiculados nas redes sociais (sejam eles de forma explícita e sem maquiagens, ou camuflados em piadas) se enquadram na categoria de discursos de ódio”. (Trindade, 2022, p. 17)
Como uma sociedade da inimizade, mais que uma crise ambiental, econômica e política, tais dimensões de mundo presentes em Odiolândia, de Giselle Beiguelman, refletem tanto uma crise da “ideia de humanidade” (Krenak, 2019, p. 11) quanto uma “subjetividade contemporânea produzida na dobra financeirizada do capitalismo” (Rolnik, 2021, p. 22). Imagens de fim do mundo como imagens de um mundo em crise, relacionadas ao fim dos tempos, ao fim da civilização global-moderna, tensionam, portanto, a natureza micropolítica (Suely Rolnik, 2018) de um mal-estar que nos habita, assim como traduzem a crise planetária que vivemos no século 21.
Nesse contexto, Ailton Krenak pontua que somos convocados a integrar um tipo de “humanidade zumbi” (Krenak, 2019, p. 26) que não tolera a fruição de vida em sua diversidade. É uma espécie de humanidade que se quer homogênea, na qual o consumo substitui a cidadania, que subtrai a capacidade imaginativa e de existência em sua pluralidade, que tanto “tira nossa alegria de estar vivos” (Krenak, 2019, p. 33) quanto limita nossa capacidade de conviver com outros mundos. Para ele, adiar o fim do mundo significa “expandir a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais” (Krenak, 2019, p. 31).
Para problematizar a política de subjetivação baseada no tipo de “humanidade zumbi” que opera na contemporaneidade, mobilizada pela lógica do individualismo, das tecnologias de dados, da inteligência artificial (IA) e do consumo, típicas do neoliberalismo e do capitalismo globalizado, Suely Rolnik [1948] adverte que esse tipo de colapso da identidade, em que não há a escuta dos “efeitos desestabilizadores da presença viva do outro em seu próprio corpo” (Rolnik, 2021, p. 69), impacta a potência pulsional e restringe o “encontro com as forças que compõem o outro” (Rolnik, 2021, p. 27).
Segundo Krenak, ter diversidade significa expandir nossa subjetividade, garantindo adiarmos o fim do mundo por meio da capacidade imaginativa, das “poéticas sobre a existência” e da capacidade “de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças” (Krenak, 2019, p. 33). Já Rolnik alerta sobre a subtração da força vital nas condições da linguagem do mundo, assim como sobre os impactos “nas condições de um ecossistema, não só ambiental, mas também social e mental” (Rolnik, 2021, p. 27).
6. Políticas da inimizade e da amizade em Daniel Lima
Diante de um contexto como este, o artista, curador e pesquisador Daniel Lima [1973] realiza a instalação imersiva “Terra de gigantes” (2023). Nela, somos profundamente atravessados por saberes, culturas e vidas afro-indígenas, por meio da imersão num ambiente cinemático transmutado em memória ancestral. Como os gigantes da Terra, a problemática principal do trabalho diz respeito à união entre povos negros e indígenas na luta por outros mundos possíveis. Contra as estruturas políticas de dominação e opressão, respondem com visões de mundo, estratégias de cura e resistência assim como produção imaginária.
A partir de interatividade, projeções audiovisuais, sonoridades e cantos, coexistimos em “Terra de gigantes” com a presença performativa, nas múltiplas telas, de figuras míticas de gigantes, como a de David Kopenawa Yanomani [1956], xamã, líder indígena, autor com Bruce Albert do livro “A queda do céu” (2010). Com sua imagem projetada em grande escala, ele nos convida à escuta ao abordar a cosmovisão Yanomani em passagens como esta: “Quando a fumaça da epidemia sobe aos céus, o peito do céu, onde o coração respira, a fumaça da epidemia gruda ali. E pelo fato da fumaça grudar ali, o peito do céu se queima” (Davi Kopenawa Yanomani).
Na luta pela existência e sobrevivência, entre espíritos da floresta, seres viventes e não-viventes, entre mundos afrodiaspóricos e corpos negros, um dos pontos de tensão do trabalho é a cena “Linha de Fogo”, composta por doze metros de extensão. Ela torna a experiência mais intensa, propiciando ao público interação por meio de sensores de presença. No caso, o fogo remete paradoxalmente tanto às queimadas e à destruição da floresta amazônica, como imagem de fim do mundo, quanto aos quatro elementos fundamentais da natureza (entre o ar, a terra e a água), que permitem expressar poder espiritual, ritualístico e transmutação de mundos.
No cerne de questões conflituosas como estas, o presente estudo destaca mudanças dos modos de agir por meio de práticas artísticas como as de Daniel Lima, assim como indica os embates lançados por pensadores como Kopenawa, Krenak, Danowski e Viveiros de Castro. Sendo que para a análise de imagens de mundo, como veremos a seguir, interessa-nos observar, em especial, um tipo de território de disputa como o das plataformas em rede.
7. Imagens do fim do mundo nas mídias sociais
Tais imagens de crise que nos interessam observar nos territórios das plataformas das mídias sociais são aquelas que impactam modos de existência pós-digitais. Trata-se de formas de pensar as redes segundo a visão do pensador Achille Mbembe [1957] a partir da noção de “políticas da inimizade” (Mbembe, 2020). Estes tipos de imagens de fim de mundo se manifestam em fenômenos como os referentes às formas autoritárias de controle das pessoas, como a monetização da atenção, o mercado de datadados, as fake news, as deep fakes, o racismo algorítmico e os discursos de ódio, entre outras imagens mortíferas das redes sociais, que colocam em xeque a própria democracia .
A artista e pesquisadora Fernanda de Souza Oliveira destaca que “os processos que operam as imagens do big data transformaram os modos de nos relacionarmos com elas. Podemos entender essas operações como ações possíveis de produção de mundos” (in Fernanda Oliveira, 2023). É nesse ponto que o ecossistema midiático impacta a potência pulsional entre a “sujeição social e a servidão maquínica” (in Maurizio Lazzarato, 2014).
Diante de um mundo permeado por imagens produzidas a partir de dados e sistemas algorítmicos, buscamos questionar: por que as imagens em rede não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de imagens globalizantes, que o globalitarismo quer que consumamos por meio da inteligência artificial e da lógica algorítmica da dadosfera (Beiguelman, 2021)?
Com a ubiquidade das linguagens digitais associada à esfera das mídias sociais, é possível observar que os agenciamentos de mundos apresentam aspectos da dataficação social por meio do avanço do autoritarismo e da cultura do ódio, próprios às forças destrutivas de um mundo em decomposição. O mesmo ocorre com a experiência da imagem: circulando por toda parte, entre os efeitos do algoritmo e as posições dos sujeitos na esfera do comum, em seus usos que induzem ao consumo, apropriando-se tanto das forças vitais quanto mortíferas das redes, para se constituir como expressão e presença de mundo.
Nesses territórios de disputa, o encontro de subjetividades diz respeito ao poder do capital na interface mundo-imagem-algoritmo sob a forma de imagens do mundo. Tal tipo de realidade pode ser considerada sociopolítica porque convoca as formas de visibilidade em seus regimes éticos, de sentido, de presença e de coletividade. Convoca também a desinformação, os aniquilamentos, os silenciamentos e apagamentos, entre outras formas de dominação.
A partir do tensionamento entre as “políticas da inimizade” (in Achille Mbembe) e suas “imagens do fim do mundo” (aqui, no caso, referentes às imagens em rede), os estudos articulam como contraconduta, ou prática de resistência, as aqui chamadas “políticas da amizade” e suas “outras imagens de mundo” (aqui, no caso, referentes às imagens da arte e das mídias independentes), a fim de localizar o embate entre forças macropolíticas (de caráter neoliberal, relacionadas ao capitalismo financeiro e de vigilância) e forças micropolíticas (de caráter tanto mortífero/reativo como vital) presentes nas “imagens do mundo” que dizem respeito às plataformas algorítmicas, em seus modos de produção da sociedade. Neste tipo de tensionamento, buscaremos conhecer regimes éticos das imagens na contemporaneidade.
8. Regimes éticos das imagens em Jacques Rancère
O filósofo Jacques Rancière aborda esses tipos de articulações estéticas e políticas como próprias do “regime ético das imagens. Trata-se, nesse regime, de saber no que o modo de ser das imagens concerne ao ethos, à maneira de ser dos indivíduos e das coletividades” (in Jacques Rancière, 2005).
Por meio de Rancière, é possível compreender que, no modo de ser das imagens do fim do mundo que acontecem nas plataformas sociais, encontramos o conjunto de valores, princípios, costumes e culturas característicos de uma determinada coletividade, época ou localidade.
A rede de relações existentes entre tais dimensões macro e micropolíticas de imagens do fim do mundo em suas articulações entre arte e mídias sociais é o objeto central desta investigação. Para tanto, pensamos as interfaces de práticas artísticas nas dimensões concernentes às imagens do mundo nas práticas midiáticas. Compreendemos, portanto, a arte não em suas especificidades, mas em tudo aquilo que lhe é impróprio, impedindo-a de se “individualizar enquanto tal” (in Jacques Rancière, 2005).
9. Por outras imagens do mundo
Nesse contexto de “imagens do fim de mundo” constituídas no divisor humano-máquina, potencializadas pelas plataformas de mídias sociais, a investigação se ancora na hipótese que as práticas artísticas em tais ambientes instigam a resistência, a criticidade, a pluralidade, nos sensibilizam e nos fazem imaginar “outras imagens do mundo”, respondendo sob a forma de uma posição ética, diante do que é mais traumático hoje em dia.
Para tanto, partimos do pressuposto que a arte contra-ataca o imaginário catastrófico e racista tanto quanto a inimizade e o ódio agenciados com as “imagens do fim do mundo” nas plataformas de mídias sociais, próprios às forças destrutivas de um mundo em decomposição, como ato de imaginar a existência de maneira diferente, como o reconhecimento recíproco da vulnerabilidade.
Comprometida com urgências políticas e com a reconexão dos corpos como construção da diversidade, as práticas artísticas que operam com as plataformas de mídias sociais tensionam o poder de performatividade das imagens algorítmicas (como capacidade de ver e analisar o mundo, in César Baio, 2015), tendo como princípio dar lugar à mundos silenciados. É desse lugar que problematizamos a noção de “outras imagens do mundo”, por meio de contribuições teóricas para os campos da comunicação, da arte e da imagem.
Tendo em vista tais circunstâncias, a pesquisa tem como principal objetivo produzir Crítica de arte tendo como ponto de partida a observação de práticas propostas por dez artistas e coletivos brasileiros como César Baio, Coletivo Kõdos, Daniel Lima, Denise Agassi, Fernando Velásquez, Gilbertto Prado, Giselle Beiguelman, Lucas Bambozzi, Paula Garcia e Plataforma eXplode, como bases estruturantes para refletir, a partir de suas singularidades, um corpo maior de artistas e obras envolvidas.
A partir dos modos como as imagens da arte se articulam em relação às imagens em rede, que regem a nossa temporalidade, o objetivo é proporcionar uma potência de mergulho nelas, que possuem como ênfase a problematização ética, a produção de comunidade e os agenciamentos coletivos. Contra as estruturas políticas de dominação e opressão, a arte responde com outras visões de mundo, estratégias de cura e resistência assim como produção imaginária.
Por outras imagens do mundo é um tipo de problematização que invoca a invenção de imaginários constituídos com as plataformas em rede por parte das práticas contemporâneas da arte que não considerem o inimigo uma ameaça por sua radical alteridade, possibilitando um estado crítico e sensório que não dissemine o ódio, a exclusão e/ou o extermínio do outro. Ao contrário, trata-se de observar imagens da arte que atuam nesses territórios a partir de políticas de alteridade, escuta, coexistência e produção plural de linguagens e comunidades.
10. Macropolíticas e micropolíticas: políticas de subjetivação dominante, coletivos temporários e a construção do comum em Suely Rolnik
Como Suely Rolnik nos diz, pelo afeto as práticas artísticas trazem a perspectiva ética, tensionam a presença vital, “a presença viva do outro em mim” (Rolnik, 2021, p. 69), situação em que o outro não se encontra fora do meu corpo, mas é uma presença vital nele. Buscam, dessa maneira, nos ambientes pertinentes às ecologias midiáticas em rede, desconstruir o aparato de controle, ferramenta central do autoritarismo, assim como mostrar a estrutura aberta do perverso dispositivo do globalitarismo, entre a tirania da informação e do capital, compreendido, como em Milton Santos, como o dispositivo hegemônico da sociedade no século 21.
Nessa direção, Suely Rolnik sustenta que o fascismo, em suas forças reativas, pode ser compreendido como a despotencialização vital da presença do outro em mim. Como uma “fábrica mortífera de mundo” (Suely Rolnik, 2023, n.p) dedicada às forças reativas do fascismo, as plataformas on-line de sociabilidade, supostamente dedicadas à conexão, de modo paradoxal produzem hoje em dia justamente o contrário, ou seja, a “desconexão entre os corpos e os afetos por meio da “normalpatia” (denominada tanto como doença da normalidade quanto normalização da barbárie) sob o pressuposto “que o que conecta as pessoas é a semelhança, e não a diferença ou a aleatoriedade.” (in Letícia Cesarino, 2022).
Para Rolnik (2023), trata-se de dimensões da “peste fascista”. Para ela, é quando a palavra, a linguagem, dissocia-se da alma, como uma doença imanente ao “regime inconsciente colonial-racializante-patriarcal-capitalista”.
Comprometida com urgências políticas e com a reconexão dos corpos como construção da diversidade, as práticas artísticas que operam com as plataformas em rede tensionam o poder de “performatividade da imagem” (Baio, 2015, p. 15) algorítmica como capacidade de ver e analisar o mundo, tendo como princípio dar lugar a mundos silenciados.
Por meio dos atravessamentos constituídos entre as imagens do fim do mundo e as imagens da arte, em suas redes de relações com as plataformas sociais, nos fluxos comunicacionais em rede, como fluxos de poder, de consumo e do capitalismo globalizado, observamos, nas primeiras décadas do século 21, embates tanto da chamada “humanidade zumbi” (Krenak, 2019) quanto da chamada “peste fascista” (Rolnik, 2023), entre a esfera macropolítica e micropolítica, a partir da presença de práticas artísticas comprometidas com a reconexão dos corpos, como construção da diversidade, trazendo como princípio as noções de pluralidade, dissidência, redes de afetos, contato e alteridade, como inscrição de outras imagens e desejo de outros mundos.
Referências Bibliográficas
BAIO, Cesar (2022). Da ilusão especular à performatividade das imagens. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, São Paulo, v. 49, n.57, p. 80-102.
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