Revista Concinnitas
PPGARTES – UERJ
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Resumo
A performance CRU / RAW, da artista Paula Garcia (São Paulo, 1975), realizada em São Paulo, no dia em que foi decretado a pandemia no Estado de São Paulo em março de 2020, consistiu em uma colisão frontal real entre dois carros, concebida como ato artístico e político. Executada pela artista Paula Garcia e pelo dublê César Hernandes, assim como documentada em vídeo pela Tandera Filmes e fotografia por Marco Cimardi, em um espaço industrial, ARCA sem público presencial, mas com público remoto e transmitida ao vivo pela plataforma do site do Marina Abramovic Institute. A obra articula o corpo, o risco e a reverberação como territórios de linguagens ressonantes. Este artigo analisa a performance CRU / RAW como contra-dispositivo, considerada uma ação que opera contra os mecanismos de captura e controle da vida pelo espetáculo, instaurando uma zona de fricção em que o corpo em performance e sua presença excedem o visível, o representável e o normativo. Nesse sentido, a obra procura deslocar os dispositivos instituídos da arte, da mídia e da própria performatividade, e assim, busca tensionar seus limites ao ativar um gesto que torna instáveis os regimes de percepção, presença e representação. A performance mobiliza, para tanto, conceitos como extremidades (em Christine Mello), presença (em Hans Gumbrecht), precariedade (em Judith Butler e Luiz Cláudio da Costa) e pulsão vital (em Suely Rolnik). A metodologia cruza análise crítica e conceitual para compreender o gesto de uma qualidade de corporalidade radical como potência ética e estética. Ao provocar, com esse gesto, uma espécie de “colapso controlado”, Garcia desestabiliza os regimes do visível e inscreve o corpo em um campo de forças que problematiza a performance no século XXI.
Palavras-chave: performance; corpo; risco; reverberação; extremidades.
Introdução
Os tempos atuais são marcados por o que podemos de chamar de “extremo”, no sentido de abranger diferentes colapsos ao mesmo tempo, como nas instâncias política, econômica, social e afetiva. De forma que, procuramos sobreviver nesses tempos de extremidades, atravessados por dispositivos de controle, de desigualdades estruturais e várias formas de violência. Nessa direção, trabalhos de arte como este analisado no artigo, nos faz questionar de que maneira processos poético, podem de alguma forma apontar para uma ruptura frente a normatividade do visível e questionar os regimes de presença e linguagem na performance nos dias atuais. E também, a refletir sobre a performance CRU / RAW, que busca provocar uma desestabilização do plano do visível ao colocar o corpo em risco real, rompendo, assim, com as mediações simbólicas que operam no campo da arte. E for fim, analisar se esta performance nos provoca a pensar através do corpo, de como a invisibilidade é nesse contexto da arte, tensionada como condição política dos corpos.
Para pensar a respeito da conjuntura politica e social do mundo, partimos de um do conceito muito importante que é a necropolítica, trazido pelo historiador e cientista político Achille Mbembe, que nos coloca como os dispositivos de poder decidem quem pode viver e quem deve morrer, instaurando uma lógica de gestão da morte, pois esse pensamento que está estruturado nas instâncias de poder que gerem o estado. Nessa direção, a performance CRU / RAW procura criar um processo poético que relaciona-se diretamente nessa lógica de Mbembe, pois ao fazer do corpo um agente de ruptura do visível e de linguagem, que procura não submeter-se à gestão das forças de poder, mas que, busca promover um corpo insurgente frente aos regimes de presença. Dessa forma, o corpo da artista, ao se lançar à colisão, não se apresenta como vítima, mas sim, como potência ativa que afirma seu direito a existir. Assim, esse gesto nos parece inscrever como processo poético ético e estético, e que, este atravessa os dispositivos da morte com um risco real, mas não como espetáculo, mas como enfrentamento político e de linguagem no campo da arte.
Para essa análise, importante refletir acerca do corpo também no contexto político de gênero, por meio do filósofo Paul Preciado, que por sua vez, nos instiga a pensar como os corpos são moldados historicamente por regimes técnico-políticos de controle e normatização, especialmente em relação às questões de gênero, identidade e dissidência. Em diálogo com apontamentos de Preciado, CRU / RAW, busca operar com um corpo dissidente que se recusa a “performar” as formas esperadas de gênero e subjetividade. Nesse sentido, podemos dizer que trata-se de uma artista que comanda sua colisão, em um gesto que interrompe a lógica da submissão, e procura afirmar uma especie de presença que busca escapar à codificação binária. Pois, a performance aponta para um colapso da estrutura que constrange os corpos a certos papéis e visualidades, e assim, reconfigura o corpo como linguagem e política de enfrentamento por meio dos regimes de presença e processos poéticos em Paula Garcia.
Portanto, podemos apreender que o processo poético em CRU / RAW não é apenas artístico, mas aponta para uma dimensão transgressiva e de radicalidade poética, e nos faz pensar que este acaba por sugerir uma fratura no pacto social que dita quem pode ser visível e em que condições. Como em Mbembe a respeito da gestão de quem pode viver e quem deve morrer. Em CRU / RAW, os regimes de presença e linguagem do corpo em performance, inscreve-se como reversão dessa lógica, pois ao se colocar em risco real, afirma sua potência de vida dentro dos regimes sensíveis na arte.
A performance CRU / RAW de Paula Garcia, realizada no dia 17 de março de 2020, apresenta um ato de colisão frontal entre dois carros, dirigida pela artista e um dublê profissional, César Hernandes, em um espaço industrial de São Paulo chamado ARCA. Mediada pela pandemia de Covid-19 e transmitida remotamente por meio do site do Instituto Marina Abramovic (MAI), e que, para este artigo, um dos instrumentais de análise da performance de Garcia, será a Abordagem das Extremidades, desenvolvido pela pesquisadora, crítica e curadora de arte Professora Dra. Christine Mello, e que, traz reflexões acerca da experiência estética (a extremidade das linguagens) e a experiência social (o extremos dos mundos). E assim, busca articular procedimentos de desconstrução, contaminação e compartilhamento na ativação de procedimentos artísticos e nas resignificações poéticas que envolvem a realização da performance CRU / RAW.
Para complementar a analise critica, foram produzidas articulações com os conceitos de precariedade, que nesse contexto do artigo, não se limita à instabilidade material ou à iminência do colapso físico, mas se configura como uma condição política: um corpo que persiste, mesmo diante do desgaste e da exaustão. E também, conceitos como Ato da Imagem, presença e reverberação, articulando as teorias de Suely Rolnik e Luiz Cláudio da Costa. Em CRU / RAW, o corpo da artista se inscreve como evento estético e político, onde a colisão aponta para um procedimento artístico de resistência e desestabilização. A análise busca uma abordagem do impacto como linguagem, do corpo como campo de forças, a partir do conceito de Deleuze, onde ele propõe o corpo não como uma substância fechada, mas um campo de intensidades em constante disputa, e por último da reverberação como forma de afetação que ultrapassa a experiência imediata da performance. Assim, a obra de Paula Garcia, nessa analise configura-se como uma reflexão crítica sobre os limites da arte da performance contemporânea, o corpo em risco, os regimes de presença, linguagem e procedimento artístico.
Na performance CRU / RAW, observamos que o que está em jogo não é apenas o embate físico entre dois carros, mas sim, a marca de uma experiência-limite no corpo da artista e no corpo do outro. Pois, a batida frontal aponta para um acontecimento que busca romper com o regime do sensível, e assim, procura instaurar um campo de dissenso no qual o corpo é atravessado por forças que o excedem, como a violência, o risco, o impacto, o ruído e a suspensão. No corpo de Garcia, essa ação parece produzir uma desestabilização radical da presença, em que processo poético deixa de ser controlado ou representável, e passa assim, a operar como fenda, como fricção, como exposição crua à imprevisibilidade do real. No corpo do outro, seja o dublê, seja o público, mesmo mediado por uma transmissão digital, o que busca-se afetar é a possibilidade de habitar um outro espaço de partilha do sensível (RANCIERE), ou seja, uma zona onde o corpo da artista ressoa no corpo do outro como vibração, como inquietação, como espanto e como deslocamento. Assim, CRU/ RAW não apenas procura convocar o corpo ao limite, mas busca transforma-lo em superfície política e estética de colisão, ou seja, uma linguagem sem mediação, e também, pois o impacto na performance é experiencia real dentro dos regimes de presença no campo da arte.5
A partir da noção de extremidades, conceito elaborado por Christine Mello (2008), este artigo investiga como determinadas práticas performáticas, como CRU / RAW, assim, articulam procedimentos de desconstrução, contaminação e compartilhamento como modos de operar nas margens do sensível. Segundo Mello, essas práticas “nascem da intenção de desmontar a linguagem videográfica para expandir seus limites”, e que, buscaram promover diálogos com outras linguagens e contextos interativos. Ao atuar nas bordas da linguagem e da representação, essas práticas expõem o corpo e a obra a estados de instabilidade e deslocamento, provocando tensões éticas e políticas que exigem uma escuta expandida e uma abertura à indeterminação. Assim, serão examinadas os processos que envolvem essa performance, e também, as instâncias sensoriais que tensionam a obra em direção ao colapso, mas também à criação, produzindo um campo onde se tornam possíveis novos modos de sentir, perceber e habitar o presente.
A noção de extremidades trazida por Christine Mello, apoia essa analise critica, enquanto “caminho de leitura”, à observação de pontos de tensão, situações conflituosas existentes no cerne do trabalho em análise. Como um jogo de leitura, um processo de produção de relações e uma estratégia de lançar questões em torno do objeto de análise, solicita ao leitor a quebra de referências estáveis no campo observacional, o deslocamento de posições hegemônicas para o lugar das extremidades, ativando, com isso, uma questão essencial contemporânea: diante das extremidades da vida, das linguagens e do extremo dos mundos, como se posicionar para uma leitura crítica?
Para isso, este artigo propõe uma investigação conceitual da performance CRU / RAW a partir da articulação entre regimes poéticos e de presença do corpo na performance de Garcia, com foco na produção de extremidades como operação estética e política. Assim, a performance é analisada como um dispositivo, como apontado por Suely Rolnik, em que o corpo opera simultaneamente como território de inscrição de saberes e como território de insurgência e criação. Como escreve a
autora, trata-se portanto de sustentar coletivamente o mal-estar “para permitir a germinação de outros mundos, em outras formas de vida” (Rolnik, 2018, p. 40). Nesse sentido, o corpo de Paula Garcia apresenta-se como um ponto de tensão, onde o risco e a precariedade não são efeitos secundários, mas sim, condições estruturantes da ação. Portanto, a obra mobiliza uma ética do processo poético que sugere ancora-se na exposição, na falha e na força, ou seja, uma força que não se traduz em potência de dominação, mas em resistência ao colapso.
Em CRU / RAW, a performance é observada como um campo de conflito de forças extremas, no qual o corpo é lançado a uma situação-limite que busca outras formas de processos poéticos e linguagem, operando como um contra-dispositivo (este conceito será desenvolvido ao longo do artigo). Assim, em ressonância com o que Christine Mello define como estética das extremidades, trata-se de uma prática que atua nos limites da percepção e da linguagem e, desse modo, busca provocar deslocamentos nas bordas do sensível e tensiona os modos habituais de recepção da obra. Nessa direção, o contra-dispositivo, nesse caso, não organiza ou comunica sentidos prévios, mas abre zonas de instabilidade onde o corpo em risco e o ambiente colapsado produzem uma outra escuta do corpo e seus regimes de presença.
Nessa direção, tal como as práticas extremas descritas por Christine Mello, CRU / RAW busca articular, por meio do colapso, uma pulsão vital. Pois, ao apresentar a experiência da colisão, do ruído e da materialidade violenta, a performance não reforça a ordem, mas ela busca interrompe-la, expondo assim sua falência dentro do contexto arte. Como propõe Suely Rolnik, são justamente essas práticas que “driblam a captura colonial-capitalística da pulsão vital e criam brechas para a emergência do ainda informe” (Rolnik, 2018, p. 36). Assim, trata-se de desativar, ainda que provisoriamente, as formas de captura do sensível, produzindo uma fratura por onde a pulsão vital possa emergir em estado bruto. O que se busca observar não é apenas um acontecimento estético, mas uma experiência extrema, em que a batida frontal convoca o corpo e os afetos para uma política do por vir. A proposta poética de CRU / RAW, parece tensionar questões éticas no que tange o sistema da arte, como por exemplo, quando esta procura formas de vida ainda não reconhecíveis pelas gramáticas dominantes, e também, inclusive aquelas instituídas pelo próprio sistema da arte e suas estruturas de poder político e de linguagem.
Para esta análise crítica, propomos observar como os processos poéticos de Paula Garcia operam um deslocamento rumo às extremidades, desestabilizando os regimes dominantes de presença e comunicação. Ao atuar nos limites da linguagem, suas ações instauram uma zona de ruptura, na qual a presença se torna instável e o gesto performativo se configura como atravessamento entre corpo, pensamento e afecção, em que, esta última, entendida em termos deleuzeanos, como a capacidade do corpo de ser afetado e de afetar, fora de uma lógica representacional. Em CRU / RAW, esse deslocamento se radicaliza ao adotar o risco como procedimento artístico, promovendo uma inscrição real do corpo da artista na colisão, que não apenas simboliza a ruptura, mas a materializa.
Nesse contexto, entendemos que o corpo deixa de ocupar uma posição central, coesa e estável para
assim, ser constituído como ruído, desvio e, sobretudo, como um campo de forças (DELEUZE). E esse conceito de Deleuze que o autor nos coloca, diz respeito a designar esse campo de forças como uma zona de intensidades que atravessam o corpo, e assim, buscam dissolver suas fronteiras identitárias e fixas. Como no sentido deleziano, esse corpo em mutação (poroso) na performance de Garcia, não se delimita, mas procura expandir-se em direção ao outro, como por exemplo, o corpo do dublê, do público e das estruturas institucionais que se veem convocadas à escuta, ao confronto e ao risco. Há, portanto, um compartilhamento do impacto, uma implicação sensível e mútua no procedimento artístico que transforma a performance em território ressonante, ou seja, um espaço onde a escuta, a reverberação e o abalo operam como forças de reconfiguração do regime de presença no campo da arte.
A performance CRU / RAW
A performance CRU / RAW foi realizada no dia 17 de março de 2020, no espaço da ARCA, um galpão industrial de 9.000 metros quadrados localizado na Vila Leopoldina, em São Paulo. Concebida e dirigida por Paula Garcia, a ação consistiu em uma colisão frontal entre dois automóveis em movimento, conduzidos pela própria artista e por um dublê profissional, Cesár Hernandes. Assim, Garcia propõe tensionamentos a partir de seu processo poético, que nos parece direto, irreversível, impactante, e assim, aponta para um conjunto de forças inscritas na performance, tais como: aceleração, colisão, risco, destruição num único momento de impacto, sem cortes, sem repetição e sem público presente fisicamente, mas assistindo a performance remotamente. De maneira que o plano da materialidade se dá com carros reais, espaço real, risco real, sem corte e sem encenação, que nos faz pensar nessa performance como um processo poético extremo e irreversível em seus regimes de presença e linguagem.

Figura 1 – Documento de performance de Paula Garcia na ARCA em São Paulo , 2023. Crédito: Marcos Cimardi
Para Paula Garcia, seus regimes poéticos sempre operaram como um espaço fundamental de elaboração subjetiva, onde angústias, traumas e tensões internas tomam forma concreta e se orientam por um desejo ético-estético de ruptura. Desse modo, CRU / RAW emerge nesse mesmo território como resposta à necessidade de confrontar, através da linguagem da performance, forças íntimas e históricas que atravessam o corpo da artista. A concepção da obra ocorre em 2012, período em que a artista vivia em Nova Iorque. Foi ali que a ideia se apresentou como uma imagem mental, e, tanto como nas performances anteriores da série Corpo Ruído, em que uma armadura e estruturas metálicas operavam como extensões corporais, dispositivos de amplificação e tensão, a artista imaginou a possibilidade de deslocar esse princípio para um novo limite. Assim, pensou no carro como uma armadura. Em que este corpo/objeto a ser vestido, manipulado, conduzido, nesse contexto, não como proteção, e sim, como um meio de exposição extrema. A performance se apresenta, então, como uma ação de risco real, não alegórica, mas uma experiência real de colisão frontal entre dois carros.

Figura 2 – Documento de performance #9 Corpo Ruído de Paula Garcia no Southbank Center em Londres, 2023. Crédito: Martina O’Shea
Portanto, o carro torna-se nesse contexto da performance de Garcia, uma superfície de inscrição simbólica e física de dissonância radical, no sentido de um dissenso, como trazido por Jacques Rancière, ao desestabilizar as formas hegemônicas de percepção. Essa desestabilização ocorre porque o carro, tradicionalmente associado à mobilidade, ao progresso e ao poder, no processo poético de CRU / RAW, é deslocado de sua função utilitária e simbólica original para tornar-se um corpo em fricção, colapsado e em ruína. Assim, ao ser submetido ao impacto, à colisão ou à performatividade do risco, o carro deixa de representar ordem, controle e eficiência, e passa a operar como ruído, como excesso, e como desvio, dentro do regime do sensível no campo da arte. Desse modo, podemos entender o carro como um operador sensível, em que corporifica um dissenso estético-político ao procurar romper, nesse contexto da performance, com os regimes dominantes que organizam o sensível: o que pode ser visto, sentido ou compreendido como arte, corpo ou tecnologia. Dessa forma, o carro deixa de ser um objeto de consumo ou transporte, e converte-se em matéria instável, vulnerável, ressonante, e assim, procura colocar em crise os valores de estabilidade, racionalidade e domínio que estruturam a imaginação hegemônica sobre o
corpo, enquanto campo sensível e ético – a técnica, como meio ou dispositivo de poder – ação e o espaço público, como território de disputa, inscrição e presença.
Nessa direção, CRU / RAW, nasce da urgência de criar uma situação real de choque. O título do trabalho ser nomeado como CRU / RAW, nos faz refletir acerca de como esse termo aponta para um
procedimento artístico sem mediação, ou seja, como se CRU / RAW pudesse anteceder a linguagem, ou melhor, o que escapa à mediação e à elaboração simbólica no campo dos regimes de sentido na arte. Como se ao nomear essa performance como CRU / RAW, a artista trouxesse a tona um processo poético que se dá em estado bruto, não domesticado por códigos, discursos ou acessórios estéticos. Portanto, nos parece tratar de uma escolha ética-poética por um fazer bruto, ou seja, uma batida frontal que se apresenta como impacto, antes de ser interpretada, explicada ou absorvida por um regime de sentido no campo da arte.
Dessa forma, CRU / RAW, faz emergir como um acontecimento imediato, atravessado por risco e intensidade, em que a matéria, como o corpo, o som, os veículos, o espaço (ARCA), apresenta-se em sua força própria, sem ser amortecida por linguagens convencionais e códigos que dizem respeito a uma leitura acerca da representação na arte. Nesse sentido, é possível considerar que a performance ensaia uma afirmação de uma linguagem do colapso, que não se orienta à metáfora, mas à produção de uma experiência sensível. Nessa direção, CRU / RAW, não aponta apenas para uma estética, mas sim, para um modo de estar no mundo que insiste na fricção direta entre forças, na exposição radical ao real, e na recusa de todo tipo de estrutura simbólica que busque diminuir a potência do procedimento artístico em Garcia.
A performance CRU / RAW, de Paula Garcia, foi concebida como uma ação concreta e extrema sobre o real. Dois carros em movimento colidem frontalmente dentro de um galpão industrial: um conduzido por uma dublê profissional, outro pela própria artista. Trata-se de uma ação real, radical, e que, procura emergir de um processo íntimo da artista, atravessado por experiências pessoais de violência, silenciamento e contenção. Pois, o corpo da artista que dirige em direção a colisão é o mesmo corpo que carrega essas marcas. Nessa obra, observamos que a artista não busca representar o trauma, mas ativá-lo como presença, tornando a fricção entre arte e vida um campo de experimentação. A colisão, nesse sentido, torna-se linguagem, e, o ruído, físico, sonoro e emocional, parece atuar como elemento sensível que mobiliza o público não por compreensão racional, mas por abalo perceptivo. O processo poético, nesse contexto, parece operar na suspensão dos sentidos habituais, desorganizando o sistema de referências para instaurar uma abertura: um campo de intensidade onde algo ainda informe possa emergir, não como explicação, mas como experiência de linguagem no campo da arte.
E para que essa colisão acontecesse, a artista passou por meses em treinamento com dublês profissionais estadunidenses e brasileiros, e nesses treinos, aprendeu a fazer manobras extremas com os carros, como por exemplo, derrapagens em alta velocidade e frenagens bruscas. Desse modo, essas experiências com os carros, foi determinante para que Garcia se sentisse “vestida” por ele, como na armadura, e lidando com essa máquina em sua complexidade. Foram também necessário meses de preparo fisico para conseguir suportar o impacto com menos risco. Assim, o processo poético de Garcia, foi atravessado por decisões técnicas e logísticas (como a preparação dos veículos, a dinâmica com o dublê, os protocolos de segurança), mas também, por extremas camadas emocionais. Importante observar que o trabalho de ensaio não foi apenas físico, mas também, exigiu uma preparação mental. A antecipação do impacto em CRU / RAW parece ter atravessado Garcia com estados de exaustão e uma forma intensa de presença. Segundo relatos da própria artista, durante semanas seu corpo teria sonhado com a colisão iminente, escutando, em sonho, o som metálico da batida que ainda não ocorrera. A partir disso, é possível levantar a hipótese de que a energia condensada na espera, assim composta, por tensão, preparação, projeção, possa já configurar um tempo da performance. Talvez seja possível pensar que os gestos anteriores ao impacto não sejam apenas preparatórios, mas integrem uma dimensão expandida da obra, na qual o corpo antecipa, em sonho e vigília, aquilo que só mais tarde se materializaria no real.
Na performance CRU / RAW, importante refletir acerca do papel do dúblê, pois podemos pensar que este não atua apenas como um corpo técnico participando da performance, mas como um operador ético e estético dentro da estrutura da performance. Pois, é possível pensa-lo como um coautor dessa experiência-limite, compartilhando com a artista a exposição ao risco e à colisão frontal. O dublê é um profissional que carrega essa experiência de ações extremas e perigosas em geral para produções de filmes e programas de televisão. Nesse sentido, ao emprestar sua presença com esses conhecimentos técnicos a um processo poético radical de impacto real no contexto da arte, faz com que, este ative um regime de presença que tensiona os limites entre arte, ação e sobrevivência.
No contexto da performance CRU / RAW, a presença do dublê, ou seja, um corpo treinado para enfrentar situações de perigo real, procura introduzir uma tensão fundamental entre a vida e a arte, deslocando a noção de performance para um território onde ambas colidem de forma literal. Logo, ao integrar um corpo técnico ao dispositivo da performance, Garcia não busca atenuar o risco, mas evidenciá-lo em sua complexidade. Assim, a atuação do dublê convoca o olhar do público para a dimensão técnica do processo poético radical, que busca revelar, que esse processo não se sustenta isoladamente, mas sim, busca acontecer através de uma rede de corpos que operam juntos no limite no contexto da performance. Assim, o dublê participa da constituição de um campo de dissenso, no qual a técnica não neutraliza o impacto, mas o intensifica, tornando visível, e assim, aponta para um compartilhamento do risco como linguagem. Portanto, o corpo técnico do dublê, longe de ocultar o perigo, nesse contexto da performance, acaba por expo-lo como parte constituinte da experiência estética, instaurando uma presença que não dissocia ação e cuidado, mas os tensiona poeticamente.
A performance que foi realizada sem público presencial, devido à pandemia, e a partir de, um acontecimento emergencial, podemos observar uma significante alteração na recepção da obra. O público foi avisado para não comparecer ao local da performance na noite anterior, pois este já havia sido convidado a assistir a performance ao vivo. Desse modo, CRU / RAW passou a existir como documento de performance, como rastro, como imagem transmitida, e, isso acrescentou mais uma camada de fricção ao trabalho. Dessa forma, a força disruptiva de CRU / RAW parece se sustentar, enquanto processo poético da colisão, como algo que não depende exclusivamente da presença física do público para produzir regimes ético-estéticos na performance de Garcia.
Nesse movimento, a obra opera como um acontecimento-limite, em que, sua potência está no próprio ato de ruptura, em que, uma colisão real, busca instaurar um corte no espaço-tempo, afetando o corpo, o objeto (carro) e os regimes de presença na arte. Pois, mesmo sem público presente fisicamente na Arca no momento da ação, o impacto, parece deixar marcas, como no registro audiovisual, nos corpos envolvidos (artista, dublê, público e equipe técnica), nas reverberações sensíveis da obra de Garcia. Essa noção de presença sem corpo do público na obra, busca mostrar que a performance não está condicionada à forma hegemônica de percepção, mas à sua capacidade de tensionar regimes de sentido e presença, como propõe Jacques Rancière. Além disso, como aponta Suely Rolnik, são os processos poéticos que abrem fissuras nos dispositivos de captura que ativam uma pulsão vital insubmissa, e CRU / RAW, nos parece inscreve-se exatamente esse campo de falência e reinvenção poética e de linguagem no campo da arte.
Portanto, devido à emergência sanitária causada pela pandemia de Covid-19, o público foi impedido de testemunhar a performance no local. É possível considerar que, naquele instante, o mundo atravessava um de seus períodos mais agudos de instabilidade, incerteza e risco. O encontro com outros corpos, naquele contexto de pandemia, poderia, potencialmente, representar ameaça concreta de contágio e morte. Essa conjuntura levanta questões importantes sobre o que significa realizar uma performance nesse cenário, em que a proximidade física é ressignificada como perigo, e o corpo do outro torna-se, ao mesmo tempo, ausência e ameaça.
No entanto, a obra foi transmitida ao vivo por meio do site do Instituto Marina Abramović (MAI), fazendo com que fosse gerada um outro tipo de presença, ou seja, uma experiência mediada pelo digital, mas marcada pela tensão do tempo real. Importante notar que a ausência física do público não retirou da ação seu caráter extremo, mas sim, o deslocou para outra camada de recepção. Neste sentido, o espectador é colocado diante de um olhar distante sobre uma ação única, assistindo a um acontecimento em sua forma mais crua e direta, sem mediações que o protejam ou distanciem da experiência.
Pode-se considerar que a batida frontal constitui tanto o ápice quanto o encerramento da ação performática. No entanto, talvez a potência do processo poético de Garcia não resida exclusivamente no instante da colisão, mas em tudo aquilo que ela parece buscar convocar: o risco assumido, o cálculo rigoroso para evitar a morte, o peso simbólico de dirigir rumo ao impacto. Ao optar por conduzir um dos carros, é possível sugerir que Garcia tenha pretendido deslocar a performance para o campo do real, onde o corpo não encena uma colisão, mas a realiza. Nesse processo poético, seu corpo se inscreve como uma possível extremidade entre arte, vida e morte, mas não como metáfora, e sim, como presença atravessada por essas forças físicas, políticas, éticas e subjetivas.
Observamos também, que CRU / RAW não parece configura-se como uma denúncia explícita, mas como um acontecimento denso, capaz de desestabilizar o olhar e os modos habituais de recepção. Nesse contexto, o corpo que escolhe colidir não o faz por falha ou acidente, mas por uma decisão estética construída com muito cuidado. Essa escolha radical parece inscrever a performance em uma zona de tensão entre o procedimento artístico e o ato extremo que se aproxima da autodestruição, entre a ação política e a suspensão do corpo como persistência da existência. Trata-se, talvez, de um processo poético que convoca o risco não como espetáculo, mas como linguagem dentro dos regimes de presença na arte.
Outro aspecto que trazemos, diz respeito a performance não parecer terminar com a colisão. Pois, o
silêncio posterior, os corpos dentro dos carros, a suspensão entre vida e morte, enfim, tudo isso busca compor o tempo expandido da obra. A performance, nesse sentido, não sugere acontecer apenas no impacto, mas também, no abalo que criar ressonâncias nos regimes de presença. Pois, o som da batida metálico das estruturas dos carros, seco, irremediável, busca transformar em matéria estética, pois sugere atravessar as telas dos espectadores remotos, e assim, atingir seus corpos por vias sensoriais. Nesse ponto, a performance parece materializar-se em reverberação, pois não há corpo no espaço da ação, mas há corpo no espaço da escuta. Pois, mesmo sem presença física do público, há presença sensível do público que recebe o impacto através da imagem, do som, da vibração da ação transmitida ou registrada. Portanto, a escuta proposta por Garcia aqui não é só auditiva, mas sim, uma escuta expandida, que acolhe os efeitos da performance como reverberação no corpo do outro. Por fim, o corpo do espectador entra em contato com o gesto mesmo à distância, como no conceito de escuta trazido pelo autor Nancy.
Extremidades da linguagem
O conceito de extremidades, desenvolvido por Christine Mello em sua obra Extremidades do vídeo (2008), propõe uma forma de pensar as práticas artísticas que operam nos limites da linguagem, do corpo e da sensorialidade. Para Mello, as extremidades não dizem respeito apenas a temas ou conteúdos radicais, mas a uma lógica estética que se instala “nos extremos das possibilidades de construção e desconstrução da linguagem” (MELLO, 2008). Tais práticas não comunicam por representação, mas por fricção, colapso, presença, e assim, buscam acionar o corpo e o gesto como territórios de experimentação sensível, nos quais os regimes de sentido podem ser tensionados, deslocados e expandidos.
A autora Mello elaborou a Abordagem das Extremidades como operador conceitual de leitura, e que, busca oferecer três vetores de análise baseados em procedimentos de ordem comunicacional: a desconstrução, a contaminação e o compartilhamento. Desse modo, o compartilhamento em CRU / RAW não acontece como transmissão linear de sentido, mas como transbordamento de afeto e risco. A performance foi realizada sem público presente, em razão da pandemia, o que intensificou a tensão entre ação e recepção. No entanto, essa ausência de co-presença não esvazia a obra, pois ela se converte em reverberação. Nesse contexto de analise da obra, processo poético não é visto somente em tempo real, mas compartilhado como eco, ruído e vibração, através da transmissão, do vídeo e da escuta expandida. Compreendemos que esse compartilhamento não acontece apenas por meio do conteúdo, mas pelo modo como a performance atinge, afeta e desloca quem a recebe, mesmo à distância. A colisão compartilha sua força não por explicação, mas por contágio sensível. Como em Mello, o compartilhamento aqui é um modo de pertencer pela experiência, não pela identificação.
Sob a perspectiva da fragmentação, é possível considerar que CRU / RAW tensiona os regimes da linguagem, da cena, da representação e do corpo. A performance de Paula Garcia não parece buscar uma organização narrativa linear, mas sim instaurar uma experiência de ruptura. Nesse contexto, o corpo não se apresenta como unidade contínua, mas como matéria estilhaçada junto ao veículo; a imagem, por sua vez, não é totalizante, mas se constitui em recortes, ruídos e interrupções. Tal estrutura fragmentada pode ser vista como um dispositivo que desestabiliza a percepção e propõe uma escuta expandida.
O tempo, também, não se dá de forma contínua: há a preparação, o impacto, o depois, e também ainda, e o tempo estendido da recepção remota, em que o público assiste em suspensão, atravessado por reverberações que se prolongam para além da batida dos carros. A performance, assim, parece convocar o olhar a habitar as zonas de fissura, de falha, de borda. Conforme propõe Christine Mello, essa fragmentação pode ser compreendida, no contexto da arte, como um gesto político de desorganização dos dispositivos da linguagem, possibilitando que o corpo atue não como signo fechado, mas como enigma, ruína ou reconfiguração.
Por fim, no que diz respeito ao procedimento da contaminação, pode-se perceber que CRU / RAW opera simultaneamente como obra contaminada e contaminante. A performance parece se constituir por interseções entre diferentes linguagens e materialidades, tais como, arte, risco, ruído, violência, tecnologia, transmissão e corpo, compondo um campo de fricções que escapa a qualquer categorização estável. Trata-se, talvez, de uma experiência marcada por uma tensão encarnada entre matéria e risco, na qual o processo poético emerge do atrito entre experiência e dispositivo. É interessante observar como o carro, enquanto tecnologia de mobilidade e controle, se vê contaminado pela presença do corpo da artista, da mesma forma, como o espaço da performance parece impregnado por som, vibração e metal em reverberação constante. Assim, a experiência não se encerra em si mesma, mas busca infiltrar-se no corpo do outro, deslocar sentidos, e instaurar-se como ruído sensível dentro de uma escuta expandida. A contaminação, nesse contexto, não se apresenta como falha, mas como potência, ou seja, uma via de conexão, travessia e infiltração ética. Como propõe Christine Mello, é precisamente nesse atravessamento impuro que se abrem novas possibilidades de presença e de linguagem.
E aqui aplicado à performance CRU / RAW, esse conceito revela-se particularmente potente, de modo que, a obra constrói-se como uma ação extrema, não porque exibe violência ou risco, mas porque opera no limite daquilo que é representável, audível e suportável. A colisão frontal entre os carros, sem mediações estéticas, dramatizações ou metáforas visuais, buscam instaurar um campo de pura força, ou seja, uma estética que abandona o signo e se ancora no impacto. Desse modo, a linguagem se desfaz no gesto real e cru. Assim, a obra parece escapar as questões do discurso na arte, mas configura-se mais como uma experiência de presença. Em vez de representar um conteúdo, ela busca atualizar-se como corpo, tempo e reverberação sensível.
Observamos que as extremidades, nesse sentido, realizam-se em múltiplos planos. No plano da materialidade, a batida frontal representa a exposição do corpo ao limite da integridade, pois o risco não é simbólico, mas calculado dentro de margens reais de perigo junto a dublês profissionais colaboradores de Garcia nesse processo. No plano sensível, o som da colisão, a visualidade do impacto e a tensão da iminência instauram uma zona de suspensão perceptiva, onde o espectador, mesmo que remoto, é assim, afetado por uma experiência-limite. E também, no plano ético, há uma decisão radical, pois ao buscar produzir arte a partir de um processo poético irreversível, sem retorno, que inscreve no real a marca de sua própria destruição.
Assim, Christine Mello afirma que, nas obras que operam pelas extremidades, “não há mais lugar para um dentro e um fora, para um início e um fim definidos, mas a instauração de um contínuo” (MELLO, 2008, p. 19). Em CRU / RAW, essa continuidade se dá na reverberação da colisão, e que, permanece, que ecoa, que não se encerra com o fim da transmissão. Portanto, a performance gera um rastro que não pode ser capturado por um registro documental comum, pois ele só pode ser apreendido como afeto, como abalo, como marca.
Esse movimento de empurrar o corpo e a linguagem ao extremo, sugere para uma convergência com outras práticas de performance que questionam a própria ontologia da arte. Podemos dizer no contexto dessa obra, que o corpo de Garcia não representa nada, mas torna-se um limite, ou seja, limite entre processo poético e acidente, entre arte e morte, entre controle e colapso. A escolha da artista de dirigir em direção ao impacto é, nesse sentido, uma ação estética que atravessa limites, então, que só pode ser pensada dentro de uma lógica de extremidades, em que, o procedimento artístico não se articula para dizer algo, mas para fazer colapsar a possibilidade de dizer. Por fim, é preciso destacar que essa produção de extremidades parece não buscar um efeito espetacularizante, mas ao contrário, a radicalidade de CRU / RAW está justamente na sua opacidade, pois não há narração, não há fechamento, não há “moral da história”. O que permanece é o acontecimento em sua crueza, no qual o corpo busca entregar-se ao processo poético a tal ponto que se dissolve nele, como se o único discurso possível, no contexto da arte contemporânea, fosse aquele instaurado pelo próprio impacto.
Performance como contra-dispositivo
Michel Foucault propõe o conceito de dispositivo como um arranjo heterogêneo de práticas, discursos e saberes que regulam o que pode ser dito, visto e feito, incidindo diretamente sobre os corpos e seus modos de existência. No campo da arte, é possível pensar o dispositivo como o conjunto de normas, aparatos técnicos e expectativas institucionais que moldam tanto a produção quanto a recepção das obras. A performance, nesse contexto, pode operar como dispositivo quando estrutura previamente a visibilidade do corpo e organiza modos de recepção a partir de um campo estético-institucional. Por outro lado, interessa-nos aqui investigar a hipótese de que determinadas performances possam funcionar como contra-dispositivos, mas não pela recusa direta das estruturas que as sustentam, mas sim, por tensionarem seus limites por meio de ruído, excesso, sobrecarga ou deslocamento em seus processos poéticos.
É nesse campo de investigação que CRU / RAW, de Paula Garcia, pode ser considerada. A performance não elimina os dispositivos que a constituem, tais como, o espaço da ARCA, os veículos, os protocolos de segurança, a transmissão online, mas sim, parece operar a partir de sua saturação e de um uso que beira o colapso. A colisão frontal entre os carros, sem mediações simbólicas evidentes, abre um campo de ambiguidade e suspensão que parece desorganizar o regime tradicional do espetáculo. O processo poético da artista, ao escolher dirigir um dos carros e se lançar à zona de impacto, aproxima-se de práticas artísticas que utilizam o corpo como lugar de tensão com os dispositivos de visibilidade, como ocorre, por caminhos distintos, em obras de Letícia Parente (Video performance intitulada Made in Brazil, 1975) ou Marina Abramovic (Performance intitulada Rhythm 0, 1974). Nesse sentido, CRU / RAW não representa o risco: ela parece se constituir a partir dele. Trata-se, portanto, de pensar se estamos diante de um gesto que não se opõe frontalmente ao dispositivo, mas que, ao habitá-lo até seu limite, abre brechas para a emergência de outros modos de presença e sentido no campo da arte. Nesse sentido, CRU / RAW não representa o risco: ela parece se constituir a partir dele. Trata-se, portanto, de pensar se estamos diante de um gesto que não se opõe frontalmente ao dispositivo, mas que, ao habitá-lo até seu
limite, abre brechas para a emergência de outros modos de presença e sentido no campo da arte.
Garcia apresenta uma ideia de corpo que é complexo, atravessado por códigos, práticas e limites regulatórios. Pois, ao dirigir um carro em direção à batida, Garcia performa a submissão do corpo ao dispositivo e, ao mesmo tempo, sua recusa, e esta se dá porque, ao seguir o protocolo técnico de segurança e conduzir um carro em direção ao impacto dentro de um contexto regulado (com preparação profissional, ambiente controlado, dublê, etc.), Garcia inscreve-se dentro das normas que definem o que é possível ou permitido em uma ação performática. Isso configura a submissão ao dispositivo, no sentido foucaultiano, já que ela opera dentro de um conjunto de regras, tecnologias e saberes que moldam a ação do corpo.
Entretanto, ao escolher colidir de forma real e irreversível, Garcia parece recusar o dispositivo ao excedê-lo, ao propor uma situação que não pode ser completamente regulada, prevista ou assimilada dentro das lógicas tradicionais da arte ou da segurança. Garcia, então, procura radicalizar seu processo poético até o ponto de falência da linguagem simbólica e da previsibilidade estética. Ao colocar seu corpo e do dublê em risco real, parece desativar a lógica do espetáculo e da representação, transformando o corpo em um vetor de abalo, em um acontecimento ético-sensível no campo da arte.
A performance, nesse contexto, pode ser compreendida como uma espécie de curto-circuito no regime de visibilidade. Não se trata de representar o risco, mas de habitar sua materialidade. CRU /
RAW parece operar justamente nesse limiar, onde o processo poético não ilustra o perigo, mas o encarna, tornando-se ele próprio um vetor de risco real. Desse modo, CRU / RAW busca tensior as lógicas do espetáculo e da vigilância, colocando em cena um corpo que se entrega à destruição não como falha, mas como gesto político no campo da arte.
Como aponta Luiz Cláudio da Costa (2017), no contexto das praticas artísticas em performance, o
corpo é sempre mais do que biológico, pois ele é analisado como um “território de forças em disputa, um campo de intensidades que excede a identidade e a representação” (COSTA, 2017). Nesse contexto, o corpo em CRU / RAW parece se configurar como um corpo em estado de exposição radical, mas não exatamente confrontado com a morte em sua concretude, mas sim, com a lógica que a estrutura, que a torna previsível, mensurável e codificável. Talvez trate-se de um corpo em estado de suspensão, em que, este não simbolize o fim, mas busca tensionar os limites entre vida, risco e controle. Assim, o carro, a tecnologia de controle e a mobilidade, é apropriado por Garcia, a fim de, produzir um gesto de suspensão, nesse contexto, a performance, não é um acidente, mas uma construção minuciosa de uma colisão como ato estético.
É possível também fazer uma leitura dessa performance como uma atualização radical daquilo que Agamben denomina “uso profano”, em que, traz a tona uma reconfiguração do dispositivo a partir de dentro, que o torna disfuncional. O procedimento artístico em CRU / RAW não parece buscar a destruição do dispositivo, seja ele o espaço, a transmissão ou a tecnologia envolvida, mas sim tensiona-lo ao limite, sobrecarregando suas estruturas até um ponto próximo do colapso. Assim, a arte, nesse processo poético em Paula Garcia, não se afirma como transcendência, mas como embate direto com as estruturas que regem o visível e o possível. O corpo, nesse contexto, não é mais sujeito nem objeto, mas vetor de falha e fissura. Desse modo, essa zona de falência organizada, onde tudo parece se manter por um fio, entre vida e morte, entre gesto e acidente, é também, o lugar onde emerge a ética do trabalho de Garcia, que aponta para uma ética da exposição, do abalo, da fragilidade como linguagem no campo da arte.
Na performance CRU / RAW, o corpo nos parece ser convocado pela artista em sua forma mais exposta, não como signo de representação, mas como território de risco, colisão e abalo. Assim, esse corpo em estado de perigo é também um corpo em condição limite de presença, exposto à instabilidade sem mediações simbólicas ou institucionais, capturado por forças externas (tecnológicas, mecânicas, históricas), mas ainda assim, um corpo resistente, presente e insurgente. Pois, ao colocar-se na direção de um impacto real, Paula Garcia busca radicalizar uma ética da performance baseada não na ficção do gesto, mas na inscrição concreta da vulnerabilidade como força estética e política no campo da arte.
A autora Judith Butler, em seu livro Vida precária: o poder do luto e da violência (2006) traz ao uma leitura do conceito de precariedade, ao afirmar que os corpos, por definição, são marcados por sua dependência de estruturas sociais e materiais que os sustentam ou ameaçam. Pois ela nos coloca, que todo corpo, ao nascer, é exposto ao mundo, e essa exposição é constitutiva de sua existência. A precariedade, nesse sentido, não é apenas uma condição social, mas também ontológica, pois somos seres que podem ser feridos, atravessados, desfeitos, muitas vezes por dispositivos normativos, violências estruturais, tecnologias de poder e afetos que nos desestabilizam. Em CRU / RAW, Paula Garcia parece transformar essa ontologia da ferida em uma poética, ao lançar seu próprio corpo na direção do impacto. Nesse sentido, não se trata de simular a destruição através do impacto, mas de aproximar-se do real da colisão como possibilidade de linguagem na arte.
Portanto, essa exposição radical remete também ao pensamento de Luiz Cláudio da Costa, que compreende o corpo na arte como um campo de tensões entre potência e limite. Para ele, “o risco, a falha, o colapso, o imprevisto fazem parte da gramática da performance” (COSTA, 2017). Pode-se considerar que Garcia não evita o colapso, mas o convoca como parte do próprio processo poético. Ao colidir com o carro do dublê, a artista parece produzir uma precariedade deliberada, instaurando uma condição de instabilidade em que o corpo não se afirma como entidade estável, mas como processo em desestabilização. Como um corpo em queda, em risco, em processo de se estilhaçar diante do olhar do outro, e dessa forma, procurar tensionar os limites do regime de presença e dos territórios de ressonâncias no campo da arte.
Mas é importante notar que essa precariedade que Garcia apresenta, não é uma fragilização passiva, pois ela articula-se como forma de resistência, pois ao se lançar contra os limites do dispositivo, o corpo da artista tensiona o próprio campo da arte. Não há redenção, mas há intensidade. Não há controle, mas há decisão. CRU / RAW não é uma performance sobre a destruição, mas pela destruição, como forma de tornar visível a potência do corpo que escolhe o abalo, que se move na direção da sua própria falência para afirmar, paradoxalmente, uma potência que se constitui no confronto com as forças que procuram normatizar, capturar e regular a experiência sensível. Diante de sistemas de controle simbólico, técnico e institucional, a obra de Garcia não reivindica uma centralidade, mas uma potência de exposição radical que insiste na afirmação do corpo como campo de risco e fricção.
Assim, essa potência precária, que Garcia produz no instante do impacto, não é individual, mas carrega os ecos de corpos historicamente expostos ao risco, ou seja, corpos racializados, corpos trans, corpos das trabalhadoras, corpos dissidentes, corpos refugiados. Desse modo, embora CRU /RAW não se construa como uma narrativa identitária, podemos observar que a performance inscreve-se no campo ético e estético de uma arte que compreende o corpo como campo político. A precariedade, aqui, não é vitimização, mas crítica, e também, uma exposição calculada ao risco como forma de desestabilizar as normatividades do visível e do possível.
Outro aspecto importante nessa análise, é que a performance também questiona os limites do que é
arte e do que pode ser um corpo na arte. Pois, o corpo que Garcia apresenta em CRU / RAW não é mais apenas corpo da artista, mas sim, torna-se sintoma, dispositivo de abalo, presença em ruína. Portanto, um corpo que, ao colidir, produz não apenas som e impacto, mas também pensamento crítico acerca do corpo na arte. Nesse sentido, Garcia procura promover um corpo que não performa a precariedade como tema, mas busca encarná-la como método.
A performance CRU / RAW, mesmo realizada à distância, sem público presente fisicamente no espaço, instaurou uma das experiências mais intensas de presença na obra de Paula Garcia. Apontamos aqui este paradoxo que é uma presença que se afirma na ausência, pois pode ser compreendido à luz do conceito de produção de presença, formulado por Hans Ulrich Gumbrecht (2004). Para o autor, a arte não comunica apenas por representação simbólica, mas por meio de efeitos de presença, ou seja, instâncias em que o corpo, a matéria, o som, a intensidade se impõem ao sensível, gerando uma experiência direta, anterior à interpretação.
Assim, a colisão frontal em CRU / RAW é, nesse sentido, um gesto de pura presença, pois ela não representa um acidente, ela é um acidente. Garcia promove um acontecimento irrepetível, situado no tempo real de sua realização, mas que recusa-se a desaparecer. Como nos coloca Gumbrecht, que a presença é aquilo que nos afeta diretamente, com ou sem sentido. O som metálico do impacto, o eco da batida transmitido pela internet, o ruído residual deixado na memória sensorial de quem assistiu, ou seja, tudo isso compõe uma presença expandida, que persiste no tempo e se espalha como reverberação.
Nesse contexto da performance de Garcia, essa reverberação não é apenas sonora ou visual, mas política e perceptiva. A artista procura reorganizar os modos como nos relacionamos com o corpo e com procedimento artístico na arte. Pois, o impacto de CRU / RAW não se encerra no momento do choque, mas propaga-se em ondas, e, como reverberação traumática, como abalo perceptivo, como perturbação contínua. Assim, o que provavelmente foi produzido ali não foi apenas um acontecimento, mas uma zona de vibração. Como se o gesto de Garcia prolongasse-se no tempo por meio de seus efeitos, mas como se a colisão nunca acabasse, mas apenas mudasse de forma, convertendo-se em reverberação sensível que persiste no corpo, no som e na memória.
Outro aspecto da obra é o próprio som da batida, que impõe-se com crueza e violência, e assim, atua como um dispositivo de presença. E a reverberação que é produzida, nesse contexto, não é apenas o som como fenômeno físico, mas a sua potência de desorganizar os regimes convencionais de percepção e sentido. Como propõe Christine Mello (2008), práticas que operam nas extremidades da linguagem acionam o corpo e o gesto como vetores de fricção que tensionam as estruturas formais e instauram zonas de instabilidade. Assim, o ruído em CRU / RAW torna-se uma força dissonante que desloca o espectador para uma escuta expandida, onde o corpo da artista, em colisão com a matéria, inscreve no sensível uma experiência que não se traduz, mas que insiste, mas como abalo, como resíduo, como presença que ressoa.
Portanto, essa lógica de reverberação articula-se com a noção de performance como arte do inacabado, do que não se fecha. Pois, CRU / RAW não é um acontecimento que se encerra em seu tempo de execução, mas sim, uma máquina de reverberação, onde o impacto instala-se no corpo de quem vê, mesmo à distância, e gera, desse modo, deslocamentos que não podem ser previstos nem encerrados. O público, mesmo remoto, é convocado por Garcia, como corpo sensível. E assim, a ausência física é substituída por um eco da presença, reverberante, que insiste em permanecer.
Nesta análise, a presença produzida em CRU / RAW por Paula Garcia, forjada a partir do impacto real e não de uma representação dramatizada, contribui para uma reconfiguração das formas de experiência estética na arte contemporânea. A performance não busca oferecer um sentido fechado, ou mesmo, transmitir uma narrativa linear, mas ao contrário, busca operar por afetação, instaurando uma relação direta entre corpo, matéria e espectador. Pois, ao eleger a colisão como linguagem, Garcia desloca o corpo da artista do lugar de portador de mensagens para o de vetor de abalo. Nesse território liminar, a arte não se limita a refletir o mundo, mas entra em confronto com ele, fazendo da fricção entre forças o próprio eixo do processo poético.
Considerações finais
Ao lançar-se contra os limites do dispositivo, o corpo da artista parece tensionar o próprio campo da arte, deslocando-o de seus protocolos normativos de visibilidade, segurança e representação, e aproximando-o mais de zonas limítrofes onde o risco real, a vulnerabilidade e o colapso tornam-se materiais poéticos em Garcia. Podemos observar que esse deslocamento se dá não como negação da arte, mas como linguagem e reconfiguração crítica de seus regimes sensíveis. Pois, em vez de dar um sentido fixo, a performance de Garcia procura instaurar um território de ressonância, onde o corpo, em sua exposição radical, convoca uma ética que não se ancora na proteção, mas na reverberação do impacto / abalo / batida. Logo, é nesse processo poético que CRU / RAW pode ser pensado como contra-dispositivo, pois este não busca representar a destruição, mas operá-la como linguagem, instaurando no espaço da arte um campo sensível de dissenso e de inscrição da precariedade como força estética.
A noção de territórios de ressonância sugere ou refere-se, neste contexto, aos espaços físicos e simbólicos ativados pela colisão, onde o corpo é convocado a vibrar, a reverberar, a lembrar. Para refletir acerca dessas ativações pela colisão, observamos no processo poético em Garcia de que a memória não busca ser narrativa, nem tampouco discursiva, mas fragmentada e vibrátil. Uma memória que busca retornar não como uma lembrança organizada, mas como ruído, como sintoma, como insistência no corpo. Assim, o que se ativa nesses territórios não é uma evocação linear do passado, mas uma experiência dissonante que reinscreve o trauma no plano ético, no plano sensível e no plano estético dos regimes sensíveis na obra. Lembrar, nesse caso, seria permitir que o corpo acolha o impacto, mesmo quando ele já passou, e reverbere sua potência como linguagem no campo da arte.
O sentido poético de ressonância na obra de Garcia, aponta para aquilo que se propaga, que ecoa, que excede o momento da performance. Quando sugerimos que CRU / RAW, pode ser compreendida / lida como território de ressonância, pensamos de um lugar de mal-estar, onde o corpo, nesse contexto da obra, não encontra repouso, onde a imagem não se estabiliza. E nos remete ao outro da imagem de que fala Jacques Rancière (2012): a imagem que não representa, mas que interrompe, que cria um espaço de dissenso na apreensão do sensível, nesse contexto de CRU / RAW.
Na performance de Garcia, o corpo parece se configurar como território, e este, composto por carne, metal, som e memória. O sentido de território, ao que analisamos, sugere ser atravessado por forças contraditórias, como proteção e exposição, resistência e ruína, controle e falência. Desse modo, o corpo do dublê em CRU / RAW pode ser analisado como uma extensão desse campo de risco, um corpo tecnicamente preparado para suportar o impacto, mas que ainda assim permanece vulnerável, exposto. Ao mesmo tempo, o corpo blindado pela violência pode ser pensado como aquele que, embora envolto por sistemas de proteção, traz inscritas marcas que, paradoxalmente, também o denunciam e o expõem. Pois, essas marcas não apenas sinalizam que algo foi vivido ou sofrido, mas que revelam e tornam visível aquilo que talvez estivesse oculto, por exemplo, como uma estrutura de poder, uma violência histórica ou alguma espécie de trauma.
Assim, em suas ressonâncias na obra de Garcia, esse corpo parece poder ser tocado, não no sentido físico, mas no plano sensorial e político. A performance, nesse contexto, não se limita à representação da imagem do trauma, mas busca construir um corpo que gere, ele mesmo, uma imagem-trauma, ou seja, não uma imagem estável ou fixa, mas uma imagem que insiste, que vibra, que se mantém em estado de reverberação no campo da arte.
Os sentidos poéticos de ressonâncias podem ser entendidas, nesse contexto da obra de Garcia, como
reverberações do impacto, tanto físicas quanto sonoras e éticas. Talvez seja possível pensá-las como formas sensíveis de inscrição do trauma no corpo, como aquilo que retorna, que insiste, que ultrapassa a possibilidade de nomeação. Podemos observar o acidente de carro na obra de Garcia, como uma situação limite relacionada ao trauma, pois esse processo poético implica ruptura súbita na continuidade do tempo e colapso da normalidade. CRU / RAW, nesse sentido, parece operar a partir desse acidente como uma reencenação do trauma enquanto experiência estética. Sugerindo, desse modo, uma possibilidade de pensar que, mesmo um corpo blindado pela violência, possa ser novamente tocado, afetado, reconfigurado a parir dos regimes de presença na arte.
Nesse sentido, a noção de ressonância entre o corpo da artista e o corpo do público pode ser pensada como fricção, como abalo partilhado no sentido de uma experiência sensível que se distribui entre corpos distintos, atravessando artista e público por camadas de som, memória e presença. A performance parece sugerir uma escuta expandida, em que não se trata apenas de assistir, mas também, de ser atravessado por camadas de som, impacto e memória. O caráter dessa ressonância em CRU / RAW pode ser compreendido como ético e sensível, pois esta procura manifestar-se como vibração que, pode potencialmente, desestabilizar os modos habituais de percepção e recepção do sensível. A colisão entre os carros poderia, nesse caso, ser lida também como uma colisão entre corpos e tempos, entre sistemas e afetos. Ao se lançar ao risco, Garcia, parece convidar o público a sentir, e não apenas a ver o colapso. É nesse gesto que talvez se desenhe parte da radicalidade da obra, que nos parece fazer do corpo um campo de reverberação, em que o trauma não é apagado, mas reinscrito como possibilidade de pensamento.
Retomando os tempos de extremidade apresentados no artigo, é possível sugerir que alcançar esse extremo exige uma mudança de posição, não apenas do corpo, mas também do lugar e do território. Nesse contexto da performance, podemos relacionar a abordagem de Garcia, com o que fala Milton Santos, geógrafo e escritor, que traz uma abordagem do território como lugar de disputa no campo
social e político, em que se articulam tensões por visibilidade, poder e sobrevivência, atravessando relações históricas, econômicas e culturais que moldam os modos de existência dos corpos. Então,
em CRU / RAW, o corpo parece inscrever-se nesse território como gesto de confronto, como ação que colide com os limites do visível e do representável no campo da arte. Nesse contexto da obra de Garcia, esse território aponta não somente ao se aspecto apenas geográfico, mas também, simbólico, afetivo e histórico em dialogo com os tempos atuais (2025).
É possível abordar esse território também como um espaço marcado por questões de gênero, no qual, inscrevem-se as violências do mundo real, marcadas por normas que regulam os corpos e suas expressões. Em diálogo com Paul B. Preciado, esses territórios de gênero podem ser compreendidos não como dados naturais, mas como construções políticas e históricas que operam por meio de dispositivos de controle. CRU / RAW parece tensionar essas construções ao apresentar um corpo que atravessa os limites da identidade normativa, re inscrevendo sua presença não como afirmação de um modelo normativo de identidade, mas como instância crítica que evidencia o corpo como campo de disputa simbólica, no qual normas de gênero e poder podem ser deslocadas, tensionadas e, eventualmente, reconfiguradas.
Conforme propõe Jean-Luc Nancy em À escuta (2002), a noção de ressonância aparece como algo
ausente no mundo contemporâneo. Vivemos, segundo o autor, em um tempo marcado por uma espécie de surdez simbólica, na qual a escuta do outro e daquilo que nele vibra encontra-se silenciada. Nesse sentido, a performance CRU / RAW, de Paula Garcia, pode ser lida como uma tentativa de reabrir essa escuta a partir da fricção entre corpo, matéria e processo poético. Assim, observamos que a obra de Garcia não parece tratar de transmitir uma mensagem por meio da performance, mas sim, talvez de deixar que algo se propague para além do gesto disparador, como uma vibração, como algo que ressoa no corpo da artista, do dublê e do público. Produzir uma performance a partir de um território de violência, como o da colisão frontal, pode ser compreendido como uma forma de escutar o trauma inscrito no corpo, permitindo que ele se manifeste não por meio de um enunciado, mas como reverberação. A ressonância, nesse contexto, ultrapassa o campo acústico e adquire densidade ética, política e sensível, à medida que ela não parece apenas se manifestar como efeito físico do som ou da colisão, mas como reverberação que atravessa corpos, instituições e regimes de visibilidade na arte.
Nesse sentido, as reverberações produzidas no corpo da artista podem ser compreendidas como
marcas sensíveis do embate entre exposição e controle. Como no corpo do dublê, essas reverberações buscam articular-se com a presença de um saber técnico que não apenas prepara para o risco, mas o acolhe como parte constituinte da performance. Já no corpo do público, mesmo ausente fisicamente durante a realização da performance, as ressonâncias se atualizam como deslocamentos perceptivos e perturbações sensoriais que persistem no tempo, ainda que mediados pela transmissão online. Em conjunto, esses corpos configuram o que aqui se propõe nomear como territórios de ressonância, zonas onde a escuta se expande e a imagem não se apresenta como totalidade, mas como fragmento em suspensão, aberta ao dissenso como linguagem. Nesse contexto, a questão não parece estar na elaboração de uma forma conclusiva para o trauma nas práticas artísticas em performance, mas na sustentação de seu mal-estar, de sua vibração persistente, acolhendo suas falhas e reconhecendo a potência transformadora que pode surgir desses processos por meio dos procedimentos artísticos em Paula Garcia.
Desse modo, o processo poético em CRU / RAW pode ser pensado como um deslocamento da lógica de apreensão da arte para uma lógica da presença e da fricção. Assim, a performance nos parece não organiza-se em torno de uma narrativa linear, mas sim, buscar instaurar uma condição de ruído e impacto que sugere uma interrupção (um corte) nos regimes de presença na arte. Os desdobramentos da obra em outros suportes, como a fotografia, a vídeo-instalação, não funcionam como meros registros, mas como prolongamentos do processo poético, e que, buscam expandir seus efeitos e aprofundar sua poética nesse contexto da performance de Garcia. O corpo, nesse processo poético em Garcia, não aponta para uma imagem estabilizada, mas para uma imagem que encarna a instabilidade, a fragmentação e a reverberação. Desse modo, a performance não se encerra no instante da colisão, mas parece se projetar como uma intensidade em suspensão, sensível, política e ética, que sugere deslocamentos nos modos de presença e de escuta, por meio da obra de Garcia, na arte contemporânea.
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