Revista VIS — Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
Universidade de Brasília / Quais CAPES A3.
https://periodicos.unb.br/index.php/revistavis/about
Christine Mello¹
Virginia de Medeiros²
¹Professora Doutora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), área de concentração: Signo e Significado nos Processos Comunicacionais. E-mail: chris.video@uol.com.br
²Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), área de concentração: Signo e Significado nos Processos Comunicacionais. E-mail: virginiademedeiros73@gmail.com
RESUMO
Este artigo analisa a série fotográfica Fábula do Olhar (2012–2013), da artista visual Virginia de Medeiros em colaboração com o fotopintor Mestre Júlio Santos, a fim de compreender a alteridade da imagem na arte contemporânea. A pesquisa parte da questão: como criar uma imagem de alteridade que escape aos regimes de representação? Para isso, mobiliza três eixos teóricos: a abordagem das extremidades, proposta por Christine Mello (2017); o direito à opacidade, de Édouard Glissant (2021); e a concepção de ficção no regime estético da arte, segundo Jacques Rancière (2021). A partir desses referenciais, investiga-se como Medeiros tensiona os limites entre visibilidade, representação e afeto, tendo a fabulação atuando como operador de sentido da realidade. Propõe-se, assim, uma imagem como encontro — gesto ético-estético que busca reconfigurar regimes de representação em busca da alterada da imagem.
Palavras-chaves: Arte Contemporânea; Alteridade; Extremidades; Encontro; Fotopintura.
ABSTRACT
This article examines Fábula do Olhar (2012–2013), a photographic series by Virginia de Medeiros in collaboration with photo painter Mestre Júlio Santos, to explore the alterity of the image in contemporary art. The research asks: how can an image of alterity escape dominant representational regimes? To address this, it mobilizes three theoretical axes: Christine Mello’s approach of extremities; Édouard Glissant’s right to opacity; and Jacques Rancière’s concept of fiction within the aesthetic regime of art. These frameworks guide the investigation of how Medeiros challenges boundaries between visibility, representation, and affect, with fabulation operating as a generator of meaning. The image is proposed as an encounter — an ethical aesthetic gesture that reconfigures modes of seeing and calls forth new ways of existing and relating to the world.
KEYWORDS: Contemporary Art; Alterity; Extremities; Encounter; Photo painting.
1 Introdução
A busca por uma imagem de alteridade na arte que escape aos regimes de representação ocupa um lugar central na pesquisa de Virginia de Medeiros, mulher nordestina nascida em Feira de Santana, sertão da Bahia. Para a artista, a caatinga não é apenas uma paisagem, mas também sua mestra: “onde há limite, ela faz mundo”, afirma Medeiros. Esse bioma afetivo a ensinou a fabular com a aridez, com o silêncio e com o que existe para além da ausência. Sua investigação artística, pautada na escuta atenta e no gesto do cuidado, opera nos limiares da experiência sensível, onde a vida se reinventa cotidianamente e a escassez se converte em força criadora. A sua obra emerge como um território de tensão, desestabilizando modos de ver — e de existir — em uma sociedade atravessada por desigualdades sociais, raciais e de gênero, ou seja, por violências sistemáticas dirigidas aos corpos historicamente marginalizados. Sua prática artística engaja-se nas lutas pelo direito ao prazer, à liberdade, à expressão, à diferença e à vida em comum, convocando uma política do encontro que desafia as normatividades
hegemônicas. Ao evidenciar como capitalismo e patriarcado operam conjuntamente na produção de territórios de exclusão, sua obra se inscreve como gesto de resistência.
Trata-se de uma prática amorosa que se realiza na criação de vínculos de confiança com o outro, instaurando, através da experiência artística, um espaço de escuta, afeto e troca com aqueles que lhe eram, até então, desconhecidos. Um encontro atravessado por presença e distância, solidariedade e desprendimento — como quem aprende uma ética que, segundo Medeiros, ativa a construção de um sentimento comum, não a partir da ideia de um mundo unificado, mas da proliferação de vínculos e da potência do agir coletivamente. É nesse eixo de criação descentralizada e em constante deslocamento
que nos posicionamos para analisar a obra em sua busca pela alteridade da imagem —
ou pela imagem como encontro, operador conceitual formulado pela artista para refletir sobre práticas situadas na extremidade da relação e da linguagem na arte contemporânea.
2 O contexto de produção de “Fábula do Olhar”
Como criar uma imagem de alteridade na arte que escape aos regimes de representação? A série fotográfica “Fábula do Olhar”(2012–2013), da artista Virginia de Medeiros em colaboração com o fotopintor Mestre Júlio Santos, confronta essa indagação ao propor fotografar pessoas em situação de rua — grupo social frequentemente representado por abstrações que atribuem a sua imagem uma presença ameaçadora, perigosa e quase sempre indesejada. O trabalho foi realizado no ano de 2012, na cidade de Fortaleza, como parte do Edital Residências Artísticas, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco em parceria com a Coordenação de Artes Visuais do Centro Cultural Banco do Nordeste.
Ao longo de um mês e meio, Virginia de Medeiros instalou um estúdio fotográfico³ em dois refeitórios voltados ao acolhimento de pessoas em situação de rua, em Fortaleza: o Refeitório São Vicente de Paulo4 e o Grupo Espírita Casa da Sopa5. Nesse período, realizou uma série de retratos em preto e branco, colheu depoimentos em vídeo sobre as histórias de vida de cada colaborador e formulou uma pergunta-chave que orienta e dá sentido à obra: Como você gostaria de se ver ou ser visto? Essa questão
conduziu todo o processo do ensaio fotográfico, abrindo um campo de subjetividade no qual os retratados, ao fabular suas próprias imagens, tornaram-se agentes ativos na construção do retrato. O fotopintor Mestre Júlio Santos coloriu digitalmente as imagens em preto e branco, atendendo aos pedidos específicos de cada colaborador. Ao lado de cada fotopintura digital, impressa em grande formato, a artista apresenta um texto em primeira pessoa com o relato de vida do retratado. Esse texto é exposto em uma moldura oval com vidro convexo, remetendo ao estilo tradicional das antigas fotopinturas. Ao final de cada narrativa, destaca-se a descrição do pedido feito para o fotopintor, reforçando o gesto de autorrepresentação e o protagonismo dos participantes no processo de criação
de seu retrato.
3 A artista contou com o apoio do fotógrafo Rodrigo Patrocínio e Marcos Rudolf para a captura do áudio. Teve acompanhamento curadorial de Bitu Cassundé e assistência da artista visual Simone Barreto.
4 O Refeitório São Vicente de Pa.ulo é um refeitório voltado para o público masculino em situação de rua. Fica localizado no bairro do Benfica, em Fortaleza. Trata-se de uma entidade da Igreja Católica, fundado pela Companhia das Filhas de Caridade coordenada pela irmã Iñ ês de Barros Lima. O Refeitório tem como propósito distribuir diariamente café da manhã e almoço para 100 moradores de rua, além de oferecer banho e atividades religiosas.
5 O Grupo Espírita Casa da Sopa é uma Organização da Sociedade Civil sem fins lucrativos que atua desde 1995 no campo da assistência social, promoção e defesa dos direitos da população em situação de rua no centro da cidade de Fortaleza. O seu foco são as mulheres.

Imagem 1: Meiriele da série Fábula do Olhar 2013, fotopintura digital 120 x 90 cm e texto-imagem 20 x 50cm.
A forma como vemos o mundo é influenciada pelo que sabemos ou acreditamos. Nesse sentido, diversas representações contribuíram para sustentar regimes de sentido e de visibilidade ancorados em lógicas de segregação, articuladas pela subjugação de espécies, raças, gêneros e classes sociais. Essas representações impessoais e generalizantes produzem figurações superficiais e estereotipadas da alteridade, marcadas pela insensatez e pelo preconceito. Potencializadas pelas redes sociais, tais imagens
colaboram ativamente para a disseminação de discursos de ódio em múltiplas esferas da sociedade contemporânea. Nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de um sentimento de violência direcionado a pessoas que vivem em situação de extrema pobreza: a aporofobia. A agorafobia é um crime de ódio que de forma abjeta vitimiza moradores de rua, sem-teto e mendigos, população heterogênea que possui em comum a situação de miserabilidade social. Essa fobia, segundo Cortina, não é apenas um sentimento individual, mas opera como um sistema social e cultural reproduzido cotidianamente em práticas institucionais, discursos políticos, e nos meios de comunicação. Essa forma de ódio dirigida às pessoas em situação de rua — uma população heterogênea unida pela condição de extrema pobreza — está alinhada aos sistemas de exclusão do neoliberalismo, nos quais o valor do sujeito é medido por sua capacidade de produzir, consumir e competir. Nesse contexto, esses indivíduos são privados do reconhecimento como membros legítimos da sociedade, sendo relegados a uma existência sem direitos, sem rosto e sem voz. Para Jacques Rancière, a visibilidade é condição necessária para instaurar qualquer disputa em prol da igualdade. Contudo, a simples exposição do anônimo não assegura sua escuta; paradoxalmente, tornar sua imagem visível pode funcionar como uma nova forma de silenciamento.
2.1 Práticas nas extremidades: Regimes relacionais, compartilhamento e
eixo de criação descentralizado.
Para analisar a série “Fábula do Olhar” a partir da abordagem das extremidades, partimos da compreensão de que Virginia de Medeiros opera em um eixo de criação descentralizado. A artista se retira do espaço institucional da arte — entendido como um lugar construído e delimitado pelas determinações do artista sobre o que deve ou não estar presente — e se desloca para o espaço público, para a rua, que constitui o cerne de sua prática. “No jogo da rua, a cada instante, arriscamos a nós mesmos”, afirma a artista. “As extremidades são potências de experimentação e risco, nas quais a arte se
reconfigura em campos imprevisíveis de criação.” (MELLO, 2008, p. 21). É justamente nesse território de imprevisibilidade — na zona liminar entre o conhecido e o desconhecido — que a poética de Medeiros se estabelece, tendo o corpo como eixo central de articulação, desconstrução e ressignificação de sentidos. Para realizar o ensaio fotográfico “Fábula do Olhar”, Medeiros praticou as ruas de Fortaleza como um
laboratório criativo, onde os vínculos afetivos funcionam como materialidades artísticas que atravessam e direcionam sua prática.
No segundo dia de residência, fiz um passeio noturno pela Praça do Ferreiro com a artista Simone Barreto. Um exercício sensorial com o desconhecido, matizado pelo medo e pela insegurança da minha chegada. “É perigoso mulher andar sozinha no centro”, me alertou o recepcionista do
hotel. Naquela noite, encontramos Ayrton, um senhor idoso, de pele morena e barba branca que vivia em situação de rua. Ayrton carregava consigo um cajado e um galho de pião. Como uma espécie de curandeiro das ruas, nos benzeu, passando o galho sobre nossa cabeça e ombros. Finalizou sua reza dizendo: “Agora vocês estão limpas, leves e prontas para seguir. Agora é pura alegria!” Além da reza, ganhei de Ayrton uma moeda com o meu número da sorte [5] e um novelo de lã, para eu não me
perder. Uma prova de afeto que nos manteve ligados em um mesmo mundo. Eu estava protegida, abençoada e recebida pela Rua. Agradeci a Ayrton tocando na sua mão como quem toca o divino. Estes objetos, durante todo o período da residência, carregarei como amuletos. (Medeiros, 2014)
O encontro entre a artista e Ayrton instaurou um estado emocional singular, reconhecido por Medeiros como um gesto inaugural — uma espécie de rito de boasvindas — decisivo para a ativação do processo criativo. Nesse instante, algo transbordou o sensível, instaurando uma zona vibrátil entre arte e vida. Os objetos recebidos são uma prova de afeto que os mantém compartilhados num mesmo mundo, carregados de sentidos associados à proteção e à conexão com o espaço da rua. A afirmação “Agora é pura alegria” revela o sentido de realidade aliada à vida emocional, indicando que, em “Fábula do Olhar”, a poética se estrutura pela via do sensível, do poder do afeto e da potência criadora que o encontro torna possível. Trata-se de um regime poético que valoriza as afecções corporais como elementos constitutivos de sentido, capazes de produzir significações a partir da experiência vivida. O projeto não parte de determinações prévias; ao contrário, inscreve-se em procedimentos artísticos que se dão por meio de um corpo em deslocamento, que precisa tanto percorrer quanto ser percorrido para que a expressão artística se manifeste. As rotas, segundo Medeiros, se configuram como feixes de luz que se abrem conforme a artista intui o caminho. Foi justamente esse movimento em contínuo deslocamento, aberto ao acaso e à alteridade dos encontros, que a conduziu até o Refeitório São Vicente de Paulo.
As primeiras semanas da artista no Refeitório São Vicente de Paulo foram marcadas por visitas frequentes e trabalhos voluntários. Pela perspectiva da abordagem das extremidades, o vetor do compartilhamento se manifesta na obra ‘Fábula do Olhar’ a partir de uma escuta atenta, de relações de convivência e de trocas afetivas entre a artista e os retratados. Trata-se de um compartilhamento mútuo — de benefícios, auxílios e afetos — que se materializa em gestos cotidianos como servir refeições, colaborar com as atividades internas, rezar, conversar e oferecer oficinas de arte voltadas para a comunidade. Para a artista, o compartilhamento opera como uma membrana vibrátil: uma zona de contato relacional que tensiona e impulsiona potências heterogêneas do encontro. Essa atitude se articula à noção glissantiana de Relação6 , compreendida não como assimilação, mas como “vibração entre diferenças” (GLISSANT, 2021, p. 67). A “vibração entre diferenças”, para Glissant, designa um tipo de encontro em que as identidades não se anulam nem se fundem, mas entram em ressonância. — um movimento dinâmico e relacional que não se reduz à lógica da compreensão totalizante. É nesse contexto que se insere o “direito à opacidade”: a recusa de ser completamente decifrado, traduzido ou capturado por regimes de saber que pretendem dominar o outro por meio da transparência. A opacidade não é obscuridade, mas uma ética da diferença — um modo de existir que não se explica segundo os parâmetros hegemônicos de inteligibilidade.
6 O conceito de Relação (que talvez seja o mais central em Glissant), aparece grafado em letra maiúscula em todos os seus livros e ensaios.
Assim, se a vibração, é o modo como as diferenças se tocam nas extremidades, a opacidade, nos termos de Édouard Glissant, é a condição que permite que esse contato se realize sem hierarquias, sem domesticação, sem redução. Ambos os conceitos afirmam uma política da Relação em que o reconhecimento do outro não se dá por meio da assimilação, mas pela aceitação de sua alteridade radical. Trata-se de uma ética que valoriza os encontros em que o inapreensível não é um obstáculo, mas uma potência de criação. É nesse horizonte que a obra “Fábula do Olhar”, de Virginia de Medeiros em
colaboração com Mestre Júlio Santos, se inscreve. Por meio da fotopintura digital, Virginia de Medeiros propõe a instauração de um espaço de fabulação, no qual os retratados participam ativamente da construção da imagem, escapando às lógicas da vitimização, do estigma ou da transparência total. Essa operação fabulatória, em articulação com os relatos de vida, desloca o regime da imagem documental e instala, como diria Jacques Rancière, uma fricção entre o visível e o dizível, entre o real e o ficcional, entre memória e invenção tensionando os modos de distribuição do sensível. Esses retratos não pretendem esclarecer nem encerrar sentidos; ao contrário, abrem-se à presença de uma subjetividade irredutível. É precisamente nessa abertura, que afirma o direito à opacidade e a potência do encontro, que reside a força estética e política dos retratos.
2.2 Práticas na Extremidade: Fabulação política, contaminação e a imagem
como encontro.
Por meio da articulação sensível entre a linguagem da fotopintura com a escuta de relatos de vida de indivíduos que vivem numa condição extrema de pobreza, Medeiros desloca narrativas hegemônicas e instaura um espaço para o exercício da fabulação. Ao fundir a fotopintura com a fabulação, Medeiros nos oferece uma imagem que recusa as evidências imediatas e os códigos estabilizados da compreensão, criando uma zona de tensão entre entre o visível e o dizível: o texto produz uma imagem que contamina a fotopintura, tensionado seu sentido — e vice-versa. Essa contaminação estética e semântica desafia classificações e cria fissuras no modo como compreendemos os sujeitos ali retratados. As imagens não pertencem mais ao campo do real ou da ficção, mas a uma zona híbrida e instável — o que Christine Mello identifica como um dos modos de atuação da arte em contextos contemporâneos experimentais e críticos. Assim, temos uma dupla poética da imagem: de um lado, testemunhos legíveis de uma história escrita que dá a ver o que foi silenciado e, ao mesmo tempo temos um visível que desvela uma
verdade suprimida pela brutalidade de um Estado que nega os direitos inalienáveis que
garantem a dignidade de cada indivíduo.
Consequentemente, as pessoas retratadas não são reduzidas a perfis identitários fixos, facilmente reconhecíveis e enquadráveis em categorias sociais pré-estabelecidas. Assim, a imagem resultante não reduz o outro ao mesmo, nem o desconhecido ao conhecido — é uma imagem concebida como encontro, nos termos de Glissant. Essa imagem opera num regime de visualidade em que se articula o jogo inevitável entre o real e a imaginação. Rancière afirma que “a ficção não é o ato de inventar mundos que não existem, mas parte integrante de nosso mundo e de nossa forma de fazê-lo” (2021, p. 7). Ao atribuir à ficção um papel central na ordem do dissenso, Rancière destaca que ela “altera os modos de representação do sensível, as formas de enunciação, e constrói novas relações entre aparência e realidade, entre singular e comum, entre visível e significado” (2012, p. 67).
Em interlocução com o pensamento de Jacques Rancière, é possível perceber que a prática artística de Virginia de Medeiros sustenta que o imaginário da ficção não se opõe ao real, mas antes o atravessa — constituindo-se como um trabalho sobre o tempo e sobre a linguagem. A linguagem, nesse contexto, assume um papel crucial no processo de mutação das formas pelas quais os sujeitos se percebem e se relacionam com o mundo, podendo operar tanto como instrumento de opressão quanto como via de emancipação. Este é um dos temas centrais no pensamento de Franz Fanon, autor com quem Medeiros também estabelece um diálogo. Transformar o silêncio em linguagem e em ação, afirma a artista, é parte de um compromisso político, estético e coletivo. A fotopintura, por sua vez, inscreve-se nesse campo de linguagem popular e afetiva, profundamente enraizada no universo estético da cultura nordestina. Técnica de caráter singular, a fotopintura atua colorindo e retocando retratos, muitas vezes adicionando elementos — acessórios, vestimentas, ornamentos — que conferem ao retratado uma aura de prestígio social. Tradicionalmente, trata-se de uma prática realizada a partir de fotografias enviadas por familiares que desejam ver suas imagens recriadas, ressignificadas, talvez redimidas pelo gesto da ficção.
Na série “Fábula do Olhar”, as identidades se desfazem em favor da expressão de uma singularidade em devir. Meiriele encomenda seu retrato ao Mestre Júlio Santos: quer ser vista como uma mulher culta e intelectual, pois almeja tornar-se escritora, como Cecília Meireles. A fotopintura, antecipando a espera, repousa sobre uma confiança prévia naquilo que está por vir — uma imagem que compõe com o corte, com a rasura e com o amargor das sínteses forjadas pelas políticas de dominação, marcadas pela privação corrosiva do “não ser” e pela afasia das dicções da alteridade. Trata-se de um retrato em que se pode afirmar, sem contradição, que se inventa uma memória. Assim, a fabulação, nesse contexto, não se opõe à verdade: ela a ressignifica, desloca os regimes de visibilidade e convoca novas formas de perceber e existir. Oferece-nos uma imagem política. Nessa direção, Rancière propõe que a política se inicia com a mobilidade dos papéis, com a multiplicação de identidades e com o alargamento dos limites do possível instaurado pela ficção. Nesse sentido, o conceito de fabulação, tal como mobilizado por Virginia de Medeiros em sua pesquisa, pode conferir à questão da imagem um lugar decisivo na consideração da vida política.
Agora, concedemos uma breve pausa para escutar, Meiriele.
Meu nome é Meirielle, tenho 23 anos. Eu nasci no Rio de Janeiro e já faz 8 anos que estou morando nas ruas de Fortaleza. (…) Eu sei que de lá de cima minha mãe está me olhando. Eu sinto a presença dela quando eu vou dormir. Todo dia antes de dormir eu faço a minha oração e peço para ela continuar olhado por mim, ela e Jesus. Eu peço pra me dar força e que eu passe mais um dia limpa, sem crack. Faz 2 semanas e 3 dias hoje, que estou sem usar droga. Eu não pretendo voltar. O que eu acho mais bonito na vida é ver alguém criando, insistindo até sair uma arte. Gosta de ver Luiz, morador de rua, inventando cantorias. Ele escreve, apaga, rasga, rebola o papel no lixo até chegar à canção. A galera de rua gosta de ficar ao redor dele, passa a noite toda cantando e rindo e brincando. Aí a vontade de usar droga e fazer besteira vai simbora. Eu acredito em dom, que cada um tem um dom. Alguns têm o dom de cantar, outros de dançar, outros de desenhar. O meu dom é escrever e ler. Eu quero ser escritora. Eu quero ser uma Cecília Meireles na vida, ou por que não um Mario Quintana? Eu gosto muito de poesias e romances. Vocês ainda vão ver meus livros publicados e fazendo sucesso. Tá ouvindo? Encomenda Fotopintura: Vestida como uma mulher culta e intelectual, uma escritora. (Meirelle, 2014)
Referências
CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: Um desejo para a democracia. São Paulo:
Editora Contracorrente, 2020.
GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
LAPOUJADE, David. William James: a construção da experiência. São Paulo: n-1 edições,
2017.
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. São Paulo: n-1 edições, 2020.
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2008.
MELLO, Christine. Extremidades: experimentos críticos – redes audiovisuais, cinema,
performance, arte contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.
MELLO, Christine. Extremidades: experimentos críticos 2 – redes audiovisuais, cinema,
performance, arte contemporânea. São Paulo: Ed. dos Autores, 2023.
MELLO, Christine. Extremidades: experimentos críticos 3 – redes audiovisuais, cinema,
performance, arte contemporânea. São Paulo: Invisíveis Produções, 2024.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. As margens da ficção. São Paulo: Editora 34, 2021.
RANCIÈRE, Jacques. A ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2021.