AUTORES: Henrique Nogueira Neme e Christine Mello
REVISTA: A Barca – Revista da Pós-graduação em cinema e audiovisual da
Universidade Federal Fluminense (UFF)
https://periodicos.uff.br/abarca/issue/view/3176
Resumo
Este artigo produz analisa duas sequencias do longa-metragem “Lingui” (Chade, 2021), de Mahamat Saleh-Haroun. Nossa análise, emprega o jogo de leitura da “abordagem das extremidades” de Christine Mello (2017, 2023) a partir do vetor da “contaminação” (Mello, 2017). A “abordagem das extremidades” parte da concepção de extremos não como oposições, mas como pontos de interconexão mais próximos das zonas fronteiriças, limítrofes. Nesse sentido, durante a análise do longa-metragem Lingui (Chade, 2021), nossa análise se descentralizará do foco nas ferramentas narrativas para as maneiras do filme tensionar os regimes de representação com regimes de presença no contexto do cinema contemporâneo do Século XXI. Tal tensionamento se dá pela articulação de planos, através da montagem, que se encontram em função dos “efeitos de presença” (Gumbrecht, 2010) manifestados pelos corpos. Portanto, a extremidade do cinema analisada condiz com a zona limítrofe entre a narratividade clássica e os regimes de presença, fora de um encadeamento necessário a narratividade, que abrem o filme à contaminação de aspectos sensoriais e corpóreos. Aprofundaremos, dessa maneira, num cinema contemporâneo bastante calcado no corpo e na compreensão da imagem enquanto presença. Por fim, o jogo de leitura da “abordagem das extremidades” nos direcionará a pensar como esse cinema predominante de regimes de presença traz diante de nós, observadores, um “mundo implicado” (Ferreira da Silva, 2019). Este “mundo implicado” desordena não somente a estética clássica do cinema, e sua narratividade causal, como também desordena as significações impostas por um “sujeito universal” e sua “razão”, responsável por erigir a referência única de uma perspectiva branca e patriarcal. O “mundo implicado”, nesse sentido, olhado a partir da “abordagem das extremidades”, produz um cinema descentralizado de uma perspectiva estadunidense-europeia, cuja experiência estética provoca a implicação dos corpos e a recusa de significações que visam perpetuar a subjugação de corpos racializados, não brancos e não europeus.
Palavras-chave: Abordagem das extremidades. Regimes de presença. Corpo no cinema. Cinema contemporâneo. Mundo Implicado.
Introdução
Com este artigo propomos analisar duas sequências do longa-metragem de Mahamat Saleh-Haroun, Lingui (Chade, 2021), que é uma produção cinematográfica contemporânea do século XXI situada no contexto de um país pertencente ao continente africano, o Chade. Esta análise visa, pelo vetor da “contaminação” da “abordagem das extremidades” (Mello, 2017), mostra os tensionamentos dos regimes de representação, quando contaminados por regimes de presença.
Num primeiro momento, vamos destrinchar como as duas sequências articulam as imagens e sons, pela montagem, em função tanto da presença da personagem Amina quanto de outros elementos que se relacionam com seu corpo. Esta articulação em torno de corpos que se apresentam constantemente configura uma narrativa outra dentro das regras da narratividade clássica as quais estamos acostumados na maioria das produções de um cinema hegemônico referente ao eixo Estados Unidos-Europa, ou à cinemas de intuito mais comercial (voltados ao entretenimento). Com isso, apontamos o tensionamento entre regimes de representação e regimes de presença em Lingui (2021).
Num segundo momento, olharemos como os tensionamentos entre representação e presença colocam o cinema contemporâneo nas “extremidades” (Mello, 2017). Por “extremidades” nos referimos ao jogo de leitura proposto pela abordagem que orienta nossa análise. Através do jogo de leitura da “abordagem das extremidades” (Mello, 2017), olharemos as ressignificações produzidas pela “contaminação” (Mello, 2017) do campo da representação no cinema por regimes de presença.
Num terceiro momento, refletiremos sobre outro aspecto propulsionado pela contaminação dos regimes de representação por regimes de presença, conjuntamente com as discussões de Denise Ferreira da Silva (2019). O filme Lingui (Chade, 2021) trabalha, por meio dos regimes de presença, as implicações dos corpos no cinema. Trazendo, com isso, tanto a ressignificação de caminhos narrativos no cinema contemporâneo do século XXI quanto a ressignificação de corpos racializados, que recusam as significações impostas por uma perspectiva branca e patriarcal.
Com esses três momentos diferentes da análise acreditamos expor, com o jogo de leitura da “abordagem das extremidades”, um tipo de cinema capaz de presentificar um “mundo implicado” (Ferreira da Silva, 2019), a partir de sua experiência estética. A contaminação dos regimes de representação por regimes de presença que produzem narrativas outras capazes de recusar subjugações produzidas por significações hegemônicas, brancas e patriarcais.
Lingui (Chade, 2021), de Mahamat Saleh-Haroun
O filme Lingui (Chade, 2021), de Mahamat Saleh-Haroun (1961 –), apresenta duas personagens que vivem em N’Djamena no Chade: Amina, uma muçulmana praticante que vive com sua filha de 15 anos, Maria. Amina, no entanto, é posicionada diante de um dilema quando toma conhecimento de que sua filha está grávida e deseja abortar a criança. No Chade, o aborto é legalizado, porém condenado moralmente pela predominante comunidade muçulmana do país – o que resulta nas práticas clandestinas
do aborto. A fim de melhor analisarmos a sequência do longa-metragem de Mahamat Saleh-Haroun, separaremos a sequência em planos para que a articulação do filme através da montagem fique mais inteligível ao leitor.
PLANO 01
A primeira imagem do filme, é um primeiro plano de Amina, que mostra seu rosto molhado transpirando e também o movimento de seu corpo ao fazer força, movimentando-se para frente.
PLANO 02
Um plano detalhe mostra a mão de Amina rasgando a borracha de um pneu e fazendo força para levantá-la.
PLANO 03
Por meio de um corte seco, vemos outro plano detalhe dela lixando a faca sob o pneu.
PLANO 04
Retornamos ao primeiro plano de Amina, que agora movimenta ainda mais o seu corpo para frente, o que quase faz a personagem sair do campo da imagem. A câmera faz pequenos movimentos para manter Amina no campo da imagem. O corpo de Amina faz a câmera se movimentar, pois a câmera se movimenta para captar a força gesto de Amina ao se inclinar, conjuntamente com sua transpiração e suas pequenas expirações.
PLANO 05
a montagem retorna ao plano detalhe que mostra Amina retirando um arame de forma circular de dentro do pneu.
PLANO 06
A montagem corta para o plano geral no qual vemos Amina tirar o arame e colocá-lo ao lado de outros arames. Esse plano geral mostra o local de trabalho de Amina enquanto ela arrasta o pneu rasgado para longe, a ação de Amina é emoldurada por pneus que contornam os cantos da tela e os arames de formato circular pendurados na parede ao fundo.
A sequência continua repetindo os mesmos planos detalhes da extração de arame do pneu e o primeiro plano de Amina. Essa relação de plano detalhe e primeiro plano finaliza através de um curto plano sequência, no qual a câmera parte de um plano detalhe das mãos de Amina entrelaçando o arame numa estrutura de ferro que apresenta um formato de asterisco. Desse plano detalhe a câmera realiza um movimento vertical para cima (tilt up), mostrando novamente os gestos do corpo de Amina ligados com o trabalho manual, suas expirações e rosto suado. No final da sequência fica nítido o que Amina produz com esses arames: fogões.

Figura 1. Frame de Lingui (2021), de Mahamat-Haroun
A segunda parte da sequência é composta por uma série de planos gerais de enquadramento bastante aberto.
PLANO 01
Um portão de ferro se abre. Dele sai Amina, vestida com seu hijab, equilibrando três fogões sob a cabeça e carregando outros pendurados numa espécie de cabide que segura na mão. Ela caminha pelas ruas terrosas de um bairro, entre os outros corpos que o habitam (passantes, árvores, animais). Novamente, há um pequeno movimento de câmera que se ajeita para acompanhar Amina.
PLANO 02
Amina caminha pela vizinhança, onde o movimento de um córrego e a vegetação de sua várzea tomam conta do foreground¹ O tamanho do corpo de Amina se torna menor em
relação ao córrego e as casas do bairro.
PLANO 03
Um corte redimensiona novamente o plano geral, enquadrando agora Amina de frente. Agora Amina parece caminhar entre duas margens, formada pelas paredes das construções de um lado e, do outro, a várzea do próprio rio. Dois cachorros caminham e farejam a rua e a vegetação. No background, entra no campo da imagem uma outra mulher carregando fogões, que grita o nome de Amina até a mesma olhar para ela.
PLANO 04
As duas mulheres atravessando uma avenida lentamente, em meio a motos, carros e outros pedestres, até chegar à beira do acostamento que hospeda um mercado/feira de rua, formado por várias pequenas tendas no chão.
PLANO 05
Num local repleto de motocicletas estacionadas que preenchem o canto direito até a extremidade esquerda do quadro, vemos Amina e um homem sentado próximo a uma mesa. Amiga negociar fogões com o homem, que não gosta do preço dos fogões. A amiga de Amina entra no quadro e oferece os fogões dela por um preço menor.
¹Quando um plano cinematográfico apresenta profundidade de campo, sendo possível visualizar elementos presentes mais à frente da câmera e mais atrás, os elementos mais a frente de câmera formam o foreground (o que em português diríamos primeiro plano da imagem). Logo, o background seria referente aos elementos mais distantes da imagem (o segundo plano). Decidimos empregar os termos em inglês para não confundir o leitor com os termos referentes ao primeiro plano, quando se trata de um tipo de plano cinematográfico, e primeiro plano da imagem, quando se trata do foreground referente aos elementos que compõem a imagem posicionando-se mais próximos da câmera.
Após esta sequência, veremos Amina retornar ao portão do qual saiu, que nos daremos conta então de que é sua casa. Lá, ela uma garota chegará sem dar sinal e Amina irá verificar o que há de errado com a garota, que compreenderemos ser sua filha Maria. Amina, então, irá perseguir Maria até seu colégio, num percurso que repete várias entradas e saídas de quadro do corpo de Amina ao atravessar ruas e avenidas. No colégio, Amina irá descobrir pela diretoria que há uma suspeita de que Maria está grávida e isto pode resultar na expulsão de sua filha. Isso irá desembocar numa outra sequência, na qual Amina confronta sua filha, desembocando na fuga de Maria.

Figura 2. Frame de Lingui (2021), de Mahamat Saleh-Haroun
A primeira parte da sequência evidencia que os planos do filme e seus respectivos enquadramentos estão em função da presença de Amina. Em outras palavras, são planos que buscam colocar diante de nós, observadores, presenças na composição do quadro: detalhes de texturas (a borracha suja e dura do pneu, suas camadas grossas das quais se extraem o arame, os rastros de suor no rosto de Amina, as luvas de borracha desta também machadas pelo material do arame e do pneu), cores e objetos (os pneus que emolduram o corpo de Amina). Sejam estas presenças, as manifestadas pela câmera ou pela montagem:
os pequenos movimentos que acompanham o corpo de Amina ao fazer força para rasgar o pneu e retirar o arame ou o próprio corte seco da montagem que nos conduz de um gesto a outro da atividade de extração do arame do pneu. Com isto já chamamos a atenção para o modo que a articulação do filme em planos e enquadramentos, pela montagem, é conduzida pelas manifestações de presença dos corpos de Amina e dos objetos. Trazendo a interrelação entre o esforço do trabalho manual de Amina e a transformação do arame em fogão.
Na segunda parte da sequência, a produção de presença se coloca diante do observador por elementos da composição da imagem quanto pela presença dos corpos, principalmente o de Amina, que é abraçado pela arquitetura do bairro, as ruas de terra, as vegetações, as diversas barraquinhas de mercadores no acostamento da avenida que se acumulam no canto direito do quadro assim como as motos enfileiradas na (provável) oficina do homem com o qual Amina negocia. Mais do que a produção de presença por elementos da composição do quadro, temos a movimentação de Amina, sua ação de
percorrer uma paisagem, que parece sempre se estender. São planos de duração mais longa que levam o observador a fruir a movimentação de Amina entrando e saindo do campo da imagem, para só depois executar o corte. Eles são propositalmente um excesso dentro de uma lógica da narratividade clássica do cinema, pois o caminho de Amina não necessariamente fornece informações essenciais a um percurso dramático do filme. Estão mais em função dos diferentes modos que o trânsito das personagens por esses espaços será redimensionado ao longo filme.
Toda a sequência de Lingui descrita até aqui, que se estende por aproximadamente 20 minutos do filme, segue uma lógica da estética clássica do cinema no qual o emprego da relação de plano e contraplano pela montagem (presentes tanto na primeira parte da sequência quanto nas outras partes) constrói uma continuidade narrativa linear da ação. Os 30 minutos iniciais de Lingui possuem uma função narrativa dentro do filme pois, aos poucos, nos apresentam Amina como uma comerciante trabalhadora e mulher muçulmana, numa sociedade patriarcal, que sustenta sua filha de 15 anos. E, ademais, apresentam um ponto de virada instaurado pela gravidez escondida por Maria e o desejo desta de abortar. Apesar de tudo, o filme de Mahamat Saleh-Haroun executa, lentamente, um tensionamento dos procedimentos da estética clássica do cinema por meio de regimes de presença.
Nesse sentido, Lingui (Chade, 2021) posiciona as ferramentas da estética clássica do cinema nas suas “extremidades” (Mello, 2017, 2022). Afinal, ele parte da “contaminação” (Mello, 2017) dos regimes de representação pelos regimes de presença no cinema, para desestabilizar o controle da narratividade clássica sobre a significação dos corpos e a experiência provocada no observador. A ressignificação produzida por essa contaminação está neste espaço fronteiriço da narrativa clássica com outros tipos de
narrativa de sobrevalorização sensorial, no cinema contemporâneo no século XXI, que potencializam a exploração de regimes de presença no cinema.
Lingui (Chade, 2021) nas extremidades: corpo e presença
Quando dizemos que Lingui, de Mahamat Saleh-Haroun, tensiona os regimes de representação no cinema com regimes de presença, estamos falando de uma “extremidade” (Mello, 2017) do cinema. Na qual a narratividade clássica cinematográfica expõe seu espaço fronteiriço com outros tipos de narrativa focadas na presença e na sobrevalorização sensorial. A extremidade da qual falamos está relacionada com a “abordagem das extremidades” (Mello, 2023) que orienta nossa análise:
[…] a abordagem das extremidades tem como princípio produzir formas descentralizadas de produção crítica, deslocadas dos modos hegemônicos de visão. Trata-se de um instrumento teórico constituído a partir da noção de extremidades, ao modo da medicina oriental, quando o termo remete a formas de tensionamento entre campos não oponentes, mas complementares, como lugar de coexistência e inter-relações entre organismos plurais. (Mello, 2023, p. 42-43)
As “extremidades” compreendidas pela abordagem de Christine Mello (2017; 2023) não condizem com a oposição entre dois pontos que desenhariam extremos opostos, de ordem binária. Condizem com os extremos enquanto zonas fronteiriças, limítrofes e atravessadas. Neste capítulo, estamos falando das “extremidades” no tensionamento das ferramentas clássicas da narratividade cinematográfica. Que, quando descentralizadas das ferramentas causais da narratividade, dão maior espaços as relações entre corpos no filme, corpo do filme e corpo do observador. Propulsionando, consequentemente, suas implicações que, simultaneamente, dizem respeito às implicações da experiência vivida no mundo.
Logo, ao falarmos que os regimes de representação são contaminados por regimes de presença, nossa análise parte do vetor da “contaminação” (Mello, 2017) para ler as “extremidades” da narrativa no cinema. Na “contaminação” dos regimes de representação por regimes de presença, “os significados não se dispersam, nem se diluem, mas, ao contrário, possuem o poder de afetar e contaminar irreversivelmente as áreas em diálogo” (Mello, 2017, p. 16). Em outras palavras, Lingui (Chade, 2021) é uma produção
contemporânea do Chade que ressignifica modos de se trazer uma narrativa no cinema, ao contaminar ferramentas da narratividade clássica, ordenadas conforme os regimes de representação, por regimes de presença.
Lingui possibilita-nos, pelo vetor da “contaminação” (Mello, 2017), expor como o filme apresenta regimes de presença que contaminam a articulação das imagens e sons através da montagem. Que, por sua vez, não nos levam a determinar Amina dentro de um julgamento: como uma mãe sofredora em busca de salvar sua filha, por exemplo. Vemos Amina enquanto um corpo feminino que está emaranhada em diversas condições que atravessam seu corpo (amiga, comerciante, mãe, trabalhadora, mulher muçulmana), tanto nas suas alegrias quanto nas suas tristezas. Mas estas condições não se fixam em uma
significação que determina o corpo de Amina num sempre-já dos estereótipos da mulher
preta.
Pois o filme apresenta o personagem de Amina, constantemente, e não deseja o controle dos julgamentos do observador sobre a personagem. Assim, o filme potencializa a recusa das tentativas de significações de uma perspectiva branca cis-heteropatriarcal, principalmente aquela da mulher preta condenada ao sofrimento.
Quando o plano cinematográfico apresenta, diante de nós, as luvas grossas de borracha manchadas de graxa preta vestidas por Amina, que, com a força e destreza de suas mãos tira o arame do pneu, temos manifestações de presença na imagem cinematográfica. O corpo de Amina esté constantemente em apresentação ao observador, pois sua presença se manifesta pelo que se coloca diante de nós, pelas coisas do mundo que o corpo dela se relaciona ou se implica.
Este aspecto de apresentação, o qual resumo pelo termo regimes de presença, é trazido pelo gesto – dos corpos em sua interação entre si, da própria câmera e do corpo fílmico – impulsiona um efeito afetivo provocador de uma força “suspensiva e potencialmente disruptiva no tecido/regime narrativo” (Baltar, 2023). A ideia de suspensão da narrativa, mencionada por Mariana Baltar (2023), é um aspecto de
contaminação de regimes de representação, atrelados a narratividade clássica, por regimes de presença manifestados pelas relações entre corpos. Com isso, nos referimos a estas passagens em Lingui, que o regime narrativo “parece estar em suspenso, sendo momentaneamente interrompido pela presença de um outro regime estético”, que Baltar denomina “regime expressivo das atrações”. Nesse sentido, “os gestos e as performances constroem um modo de expressar os corpos na tela que mobilizam o espectador, a partir de afetos e engajamentos sensóriosentimentais”.
“Entendo que atrações e narrativa são sim regimes distintos (e não meramente opostos), que podem conviver, e efetivamente o fazem, num mesmo tecido fílmico.” Depois, Mariana Baltar (2023) complementa, “Assim, deve-se pensar esta convivência como uma série de relações dinâmicas de equilíbrio instável entre dois regimes estéticos”. Isto é uma intersecção com o que lemos neste artigo, pelo vetor da “contaminação” (Mello, 2017), enquanto o tensionamento dos regimes de representação no cinema por regimes de presença. Logo, os trânsitos de Amina nas sequências comentadas nesta
subseção, possuem um aspecto de atração que conduz o observador a implicar seu corpo. No sentido de que as atrações “se sustentam em sua capacidade de mostração mais do que no narrar (a dimensão narrativa entendida como storytelling)” (Baltar, 2023, 13) e, consequentemente, contribuem para os personagens em constante apresentação não se estabilizarem numa representação que os determina nas significações sempre-já dadas.
Nos procedimentos destas duas sequências, é possível apontar como Lingui
(Chade, 2021) permite se contaminar por regimes de presença. Desse modo, tais regimes
tensionam regimes de representação no cinema ao explorarem um modo de articular
planos e enquadramentos, através da montagem, que se encontram em função dos regimes
de presença das imagens e sons. Trazendo, portanto, as relações implicadas dos corpos
no filme, do “corpo fílmico” (Baltar, 2023) e do corpo do observador, mais próximos de
um eixo que encarna “o real do mundo, suas alteridades, seu cotidiano e intimidade”
(Baltar, 2023, 15).
Lingui (Chade, 2021) nas extremidades: implicação dos corpos
Resumidamente, o que demonstramos com a análise da sequência inicial de Lingui é como o filme se utiliza de uma narrativa de apresentação, aparentemente atrelado às ferramentas da narratividade clássica no cinema, para tensionar tais ferramentas com planos que permitem suas imagens serem contaminadas por regimes de presença. Há, ademais, um outro aspecto visível quando lemos Lingui pela “abordagem das extremidades”, através do vetor da “contaminação”. Este aspecto diz respeito a implicação do corpo de Amina com outros corpos.
Onde queremos chegar com estas observações? As distâncias percorridas por Amina presentificam na imagem a implicação do seu corpo com os bairros de N’Djamena, seu corpo enquanto comerciante, mulher, amiga, um ser em relação com outros seres. Não somente, todo esse processo também conduz, aos poucos, nós observadores a implicarmos nosso corpo naquela paisagem e ativar a memória de nosso
corpo que nos relembra estarmos implicados também o mundo, no qual coexistimos com outros seres.
Denise Ferreira da Silva (2019) problematiza as estratégias do “sujeito universal pósiluminista” e sua “razão” de atualizarem significações que perpetuam a manutenção da subjugação de corpos não brancos. Este “sujeito universal” e suas ferramentas constroem um “mundo ordenado” (Ferreira da Silva, 2019). Um “mundo ordenado” composto pelo encadeamento causal de pensamentos, estruturado na continuidade do tempo linear e cronológico, que “mantém a existência humana e o mundo reféns de um modo de
conhecimento incapaz de justificar a si mesmo sem o Espaço-Tempo” (Ferreira da Silva, 2019, 112). É por meio dessa estrutura causal, de temporalidade linear, que as manutenções de “sujeito” e “mundo”, “sujeito universal” e “outros”, entre outros ocorrem. Consequentemente, mantendo suas violências, através da “dialética racial” (Ferreira da Silva, 2022), que atualizam as estratégias e os modos de fixar significações nos corpos racializados.
A“dialética racial” e o emprego da raça, dentro de um terreno no qual a implicação dos corpos é inexistente em razão do corpo branco permanecer enquanto referência, “têm possibilitado a organização do mundo em hierarquias, permitindo projetos de devastação física, moral e psíquica de um enorme contingente humano ao redor do mundo” (DÍAZBENÍTEZ, 2021, 10). A fixação de significações está nas determinações, nos nomes, nas classificações, que transformam os corpos racializados em “carne”. Para Hortense J. Spillers (2021), a “carne” é o estado primário anterior ao corpo. Spillers, com “carne”, remete aos corpos de pessoas escravizadas que, por serem “carne”, são tornados objetos como uma matéria-prima comercial².
Contudo, para Spillers (2021), autora que fundamenta toda a discussão trazida por Denise Ferreira da Silva, a “carne” do corpo racializado não estagnou nos períodos coloniais, com o comércio de pessoas escravizadas sequestradas de África. A “carne” ainda se faz presente nas significações fixadas pelo “mundo ordenado” (Ferreira da Silva, 2019), com sua “episteme dirigente” (Spillers, 2021, 37) – atrelada aos corpos hegemônicos desimplicados – regida pelo pensamento do “sujeito universal pósiluminista” e sua “razão”.
Os autores deste artigo, brancos e cisgênero, ao mesmo tempo que buscam se implicar, sabem que não estão imunes a cometer a violência da nomeação, de fixar significações. Realizo esta análise no intuito de investigar modos outros de apresentação de corpos racializados, que recusem as imagens produzidas por um eixo hegemônico e não repitam a violência de transformar corpos em “carne”. “A parte capturadora não só “adquire” o direito de dispor do corpo cativo como bem entender, mas ganha,
consequentemente, o direito de nomear e “nomeá-lo” ” (Spillers, 2021, 39). Nesse sentido, buscamos chaves de leitura que permitam trazer a presença de filmes que recusam ser significados segundo a lógica do “mundo ordenado”, amparado nos efeitos produtivos do pensamento do sujeito universal e sua razão.
²“Eu faria, no entanto, uma distinção neste caso entre “corpo” e “carne” e imporia essa distinção como a
central entre posições de sujeito cativo e libertado. Nesse sentido, antes do “corpo” existe a “carne”, aquele grau zero de conceituação social que não escapa da dissimulação sob a escova do discurso ou dos reflexos da iconografia. Mesmo que as hegemonias europeias, em conjunto com o “intermediário” africano, roubassem corpos – alguns deles femininos – das comunidades da África Ocidental, consideramos essa irreparabilidade humana e social como crimes graves contra a carne, uma vez que a pessoa de mulheres africanas e homens africanos registrou as feridas. Se pensarmos na “carne” como uma narrativa primária, então queremos dizer que ela está cauterizada, dividida, rasgada em pedaços, rebitada no buraco do navio, caída ou “fugida” para o mar”. (Spillers, 2021, 34)
Lingui (Chade, 2021), produz imagens e sons em função da recusa de fixar sentidos, de estabelecer significações, eles buscam a experiência estética de implicar o corpo do observador no mundo dos corpos implicados e presentificados pela obra. Logo, desestabilizando ferramentas que constroem os regimes de representação no cinema que operam pela narratividade voltada a concatenar planos enquanto cadeias narrativas. Concatenação que é um controle, que decide a significação de cada plano e exerce a violência do captor, comentada por Spillers (2021) de nomear o corpo capturado pela câmera e a imagem produzida por ela. Portanto, Lingui (2021) nos apresenta um “mundo ordenado” sendo contaminado por um “mundo implicado”, que deixa “de ser pensado como uma totalidade ordenada, passando a existir a partir de uma vinculação profunda entre os entes que o compõe”.
A implicação dos corpos, conjuntamente a implicação do corpo do observador, está relacionada a eventos que alavancam maiores ou menores detalhes: como personagens ou outros corpos secundários que descentralizam nossa atenção do personagem principal, objetos e cores da cenografia ou da iluminação. Até, inclusive, pela própria dinâmica da encenação de movimentar o que entra e o que sai do campo da imagem, o que vemos e não vemos. Observamos, com isso, o tensionamento do fluxo da
narratividade que acontece na “contaminação” do filme por “gestos, instantes e passagens
desviam nosso olhar e sensações” (Baltar, 2023, 17).
Lingui (Chade, 2021), por nos colocar em contato com as presenças de seus corpos e dos corpos de N’Djamena, no Chade, traz a “Poética Negra Feminista” (Ferreira da Silva, 2019) na “capacidade criativa que a Negridade indexa, sua capacidade de expor e dissolver a separabilidade” (Ferreira da Silva, 2019, 96). E, consequetemente, reivindicar o “valor” expropriado dos corpos racializados por recusar uma significação branca cisheteropatriarcal dos corpos de Amina e Marina. Mesmo nos momentos do filme em que os corpos de Amina e Maria expõem a violência total consequente ao estupro, que resultou na gravidez de Maria. Ou na punição, com as próprias mãos, realizada por Amina contra Brahim (o estuprador). Nesses momentos a “Poética Negra Feminista” (Ferreira da Silva, 2019) atua movendo a “indecidibilidade” do corpo da mulher preta ao seu favor, no sentido de cancelar a significação patriarcal, a ato de decisão da “forma-patriarca” (Ferreira da Silva, 2021) que a coloca como um nada, um objeto.
Considerações finais
Lingui (Chade, 2021), provoca uma experiência estética que conduz à implicação do corpo do observador com o corpo do filme e o corpo na imagem. A implicação dos corpos em Lingui, resumidamente, está correlacionada a presentificação de um “mundo implicado” (Ferreira da Silva, 2019), dentro do qual o corpo não se limita à sua própria presença individual, ao sujeito, à centralidade da figura humana. Na verdade, a implicação neste “mundo implicado”, condiz com a presença de um corpo em relação constante com outros corpos atravessando e sendo atravessada por esses outros corpos. Falamos de corpos em coexistência, em reciprocidade mútua. A partir do vetor da “contaminação” (Mello, 2017),
falamos de um filme que, nos tensionamentos entre regimes de representação e regimes de presença, provoca a desorganização do “mundo ordenado” pelo “sujeito universal” e sua “razão”.
Lingui, ao implicar o corpo do observador com o filme, nos devolve a implicação já existente no próprio mundo que habitamos. Podendo ser visualizada quando percebemos, na nossa experiência real de mundo, que uma paisagem não é apenas composta pelo corpo que chama a atenção de nossos olhos, mas pela potência de um corpo em relação com as potências de outros corpos. Suas ação e reações enquanto presenças ainda não contornadas por julgamentos que determinem sentidos bem fixados através de uma linearidade narrativa. Também é nesse sentido que o filme de Mahamat Saleh-Haroun apresenta imagens que recusam a significação hegemônica branca, cis heteropatriarcal. Deslocando, portanto, nossa constante referência centralizada nas imagens e corpos hegemônicos.
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