6. Seminário (30/10) – Lindolfo Roberto Nascimento – Extremidades: poética do funk em “Desabafo 2”  (videoclipe de MC Poze do Rodo, Brasil, 2025)

Lindolfo Roberto Nascimento (PUC-SP)

Christine Mello (PUC-SP/UERJ)

Revista para publicação: CONCINNITAS (PPGARTES/UERJ)

RESUMO

Utilizando a abordagem das extremidades (MELLO, 2017) como jogo de leitura, analisaremos o videoclipe “Desabafo 2” de MC Poze do Rodo (2025), de modo a compreender como tal produção audiovisual produz imagens de contra-ataque à criminalização do funk (CYMROT, 2022), através do encadeamento de imagens da prisão e da soltura do artista citado. Ao fim, a intenção do presente texto é questionar: como a articulação audiovisual em imagens, música e oralidade podem atuar contra o racismo e a discriminação nas redes digitais (SILVA, 2002)?

Palavras-chave: Funk Brasileiro; vídeo; racismo; extremidades

ABSTRACT

Using the extremities approach (MELLO, 2017) as a reading game, we will analyse the music video “Desabafo 2” by MC Poze do Rodo (2025), in order to understand how this audiovisual production produces images that counteract the criminalization of funk (CYMROT, 2022), by linking images of the arrest and release of the aforementioned artist. Finally, the aim of this text is to ask: how can audiovisual articulation of images, music and orality act against racism and discrimination on digital networks (SILVA, 2002)?

Keywords: Brazilian Funk; video; racism; extremities

INTRODUÇÃO

Este artigo propõe, a partir de uma perspectiva comunicacional, uma leitura crítica do videoclipe “Desabafo 2” do MC de funk Poze do Rodo, à luz da noção de “extremidades” formulada por Christine Mello (Rio de Janeiro, 1966), segundo a qual obras de arte contemporâneas – e neste contexto entendemos sobretudo as de ordem periféricas – operam nas margens, através de imagens traumáticas e sob a lógica da desconstrução destas.

A análise considera ainda o pensamento de Tarcízio Silva (2022), que contribui para pensar como o racismo opera também por meio de imagens nas redes, possibilitando sujeições e micro agressões. Ao situar “Desabafo 2” nessa linha de pensamento, defendemos que o videoclipe não apenas documenta uma experiência individual de repressão, mas performa uma resposta estética coletiva nas redes, capaz de tensionar e contribuir com a reconfiguração das formas como o funk, o público funkeiro e seus artistas são representados.

Esta obra audiovisual é criada a partir da prisão de Marlon Brando Coelho Souto Silva – nome de batismo do artista popularmente conhecido como MC Poze do Rodo – em 29 de maio de 2025, detenção amplamente noticiada pelos meios de comunicação e recompartilhada incontáveis vezes nas redes sociais, o que reacendeu o debate sobre a criminalização do funk e de seus artistas como parte de um processo histórico de estigmatização racial e territorial, baseado em ideias racistas e classistas acerca do povo periférico, de sua cultura, e de seus artistas, num processo de subjugação daqueles que conseguem ascender socialmente através do funk. Estas mesmas imagens possibilitaram a criação do videoclipe “Desabafo 2” como um manifesto e um contra-ataque estético à criminalização do artista. Daí a importância de uma análise criteriosa dessa obra audiovisual, de maneira a entendermos como a construção de imagens atuam a serviço do racismo e da desigualdade, e como também podem ser pensadas no sentido oposto, de modo a combater tais males sociais profundamente arraigados em nossa cultura.

DESABAFO 2

“Desabafo 2” é um vídeo one single channel, dirigido por Igor Vargas, Produzido pela gravadora Mainstreet Records e Maze Company, com produção musical de Portugal no Beat, publicado na plataforma de vídeos YouTube no canal do MC Poze do Rodo, com 2 minutos e 38 segundos de duração, nos quais se mesclam reproduções de cortes de vídeo de sua prisão, divulgados em telejornais, imagens de sua soltura, com amplo acompanhamento popular e pedidos de soltura, a carreata que acompanhou seu trajeto de volta para casa, o reencontro com familiares, bem como depoimentos indignados do artista para veículos de comunicação após sua soltura. Sua publicação, ocorrida em 4 de junho de 2025, acontece no dia seguinte à soltura do artista via habeas corpus, após 5 dias de sua detenção – por suposta apologia ao crime e envolvimento com o tráfico – e intenso debate público sobre uma reacesa polêmica acerca da criminalização do funk.

As linguagens que se hibridizam neste objeto de análise são a videográfica, musical, performática e oral, com predominância da linguagem do vídeo, que é, em sua origem, uma linguagem já altamente contaminada, e que, justamente por isso, deve ser buscada “justamente onde ele (o vídeo) está respondendo a necessidades novas, fazendo desencadear consequências não experimentadas anteriormente”. Esta é Christine Mello citando o pensamento de Arlindo Machado em relação à natureza heterogênea de tal linguagem (MELLO, p.28, 2008).

De maneira que podemos entender que é justamente essa natureza impura do vídeo e suas potencialidades, que possibilitaram, que algo corriqueiro entre músicos, como a feitura de um videoclipe, fosse aqui redimensionado para ser, não a peça de divulgação de uma música, como costumeiramente ocorre, mas: 1) um poderoso veículo de documentação do fato ocorrido; 2) uma recriação da narrativa em torno da prisão e midiatização desta; e sobretudo 3) um manifesto formador de novas imagens do artista funkeiro (que passa então de um criminoso sumariamente sentenciado pela opinião pública a artista criminalizado).  

Sobre Poze, nascido em 1999 no bairro de Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro, mais especificamente na Favela do Rodo – comunidade referenciada em seu vulgo, prática esta comum entre MC’s de funk -, despontou em 2019 após o sucesso de sua música “Os Crias do Flamengo”, com fama crescente desde então, cantando os gêneros trap e funk proibidão (subgênero do funk que aborda temáticas ligadas ao crime). Em relação ao diretor do vídeo, Igor Vargas, não foi possível localizar mais informações sobre sua biografia além da informação de que é diretor de criação, bem como sua associação com as empresas MainStreet (@mainstreet) e Maze Company (@maze_hub) em sua bio da rede social Instagram. O mesmo ocorre em relação ao produtor musical Portugal no Beat, do qual também não é possível encontrar muita informação pessoal, mas é sabido que ele produziu artistas de destaque da música urbana atual, como Baco Exu do Blues, Oruam, Filipe Ret, Wiu, entre outros.

Esse time, trabalhando no ato dos desdobramentos da prisão e posterior soltura de Poze do Rodo, constrói uma poética de resistência e reivindicação à dignidade que se opõe diretamente à estética midiática da criminalização, ao reverter a imagem criminosa que se tentou colar ao cantor. Mais do que um desabafo individual, a obra se constitui como um manifesto visual que reivindica o direito de existir e se expressar com complexidade e humanidade, tocando de forma profunda em anseios coletivos da população periférica, como dignidade em abordagens policiais e liberdade de expressão, direito que – é sempre bom lembrar – é constitucional, mas que nem sempre se realiza na prática, sobretudo quando falamos de grupos vulnerabilizados e corpos desviantes-periféricos.

DESABAFO 2 NAS EXTREMIDADES

Antes de adentrarmos na análise do videoclipe de “Desabafo 2”, propomos um aporte sobre o mecanismo de operação do racismo a partir de Achille Mbembe (Otele, Camarões, 1957) seguido de uma breve contextualização dos eventos que antecedem a produção e publicação de tal obra videográfica:

É típico da raça ou do racismo sempre suscitar ou engendrar um duplo, um substituto, um equivalente, uma máscara, um simulacro. Um rosto humano autêntico é convocado a aparecer. O trabalho do racismo consiste em relegá-lo ao segundo plano ou cobri-lo com um véu. No lugar desse rosto, faz-se emergir das profundezas da imaginação um rosto de fantasia, um simulacro de rosto e uma silhueta que, desse modo, tomam o lugar de um corpo e um rosto humanos. O racismo consiste, pois, em substituir aquilo que é por algo diferente, uma realidade diferente. (MBEMBE, p.69, 2018)

Partindo da hipótese de que a operação policial que resultou na detenção de Poze do Rodo foi engendrada para gerar imagens de criminalidade, e assim reforçar a associação entre funk, cometimento de delitos e desordem, podemos afirmar, a partir do pensamento de Mbembe, que o rosto real do artista foi substituído pelo véu, ou pelo rosto de fantasia do criminoso, tomando o lugar do rosto humano de Poze. E aqui não afirmamos inocência (já que tal afirmação deve se dar caso a caso), mas questionamos a sujeição de criminalidade a que corpos negros são prévia e instantaneamente submetidos sem o devido processo legal.

 Podemos assim incluir tal operação em um longo histórico de criminalização, de caráter midiático e policial, que ocorre desde a primeira onda de popularização do movimento funkeiro, ainda na década de 1990 (CYMROT, 2022). Essas imagens, traumáticas, reforçam ideias preconceituosas e discriminatórias acerca da cultura funkeira e do povo negro. Contudo, as imagens da libertação do artista, que culminou com o lançamento do videoclipe “Desabafo 2”, – apenas um dia após sua soltura – invertem essa lógica, oferecendo uma resposta estética contundente às imagens veiculadas originalmente em relação à sua prisão. Assim, o clipe torna-se, aqui, o objeto central de análise, entendido como obra audiovisual que reinstaura a dignidade do artista a partir de suas imagens de aclamação junto ao povo, ressignificando em alguma medida os sentidos atribuídos ao funk na esfera pública.

Tal contextualização dos fatos que antecedem a obra se faz importante, pois – tendo como base o pensamento de Christine Mello -, tensiona aspectos dos extremos do mundo – entendidos aqui como a criminalização racista de um gênero musical criado e consumido majoritariamente por pessoas negras e de origem periférica – com as extremidades da linguagem do vídeo, que, passa agora por um duplo processo de dobra: o primeiro, sendo inerente ao próprio momento em que é produzido, considerando todas as mudanças que a internet trouxe para a produção e consumo de videoclipes, ou seja: a lógica do videoclipe veiculado em canais de televisão como a MTV, sem um maior poder de decisão do receptor de escolha, quando ou como assistir caiu por terra há tempos: hoje, o indivíduo decide qual, quando, como e onde acessar um videoclipe, e o que o leva ao conhecimento de um trabalho de tal natureza são muitas vezes cortes aos quais é exposto através da lógica algorítmica da timeline de uma rede social, de maneira que, por não haver uma programação – e aqui falamos de grade horária televisiva – um vídeo produzido pode desaparecer na enxurrada de conteúdos e imagens produzidos e publicados diariamente nas redes, sobretudo a depender da lógica de algoritmos racistas que regem tais redes e desfavorecem a visibilização de conteúdos de corpos negros (SILVA, 2022), mas por outro lado, a depender de seu impacto, também é possível atingir um público muito maior, sem a restrição de uma transmissão local, como ocorreria com um videoclipe na TV. Analisar essa dobra, que é comum do momento em que vivemos, é levar em consideração não apenas a métrica da audiência, mas ainda mais importante que isso, considerar o engajamento, o que, em um vídeo de teor político como este, tem fundamental importância, pois trata da agência de pessoas em rede, sob a forma de compartilhamento.

O compartilhamento do vídeo diz respeito às transformações que ocorrem na produção, na recepção e na distribuição do vídeo. (…) O compartilhamento do vídeo representa sua passagem de uma narrativa acabada para a construção dinâmica e interativa da narrativa. (MELLO, p. 195 e 196, 2008)

Essa construção dinâmica citada por Mello, se dá desde a origem do fato, sob viés racista, em suas repercussões nas redes, entretanto, passa a ser revertida a partir da tomada de atitude de pessoas que agem contra o justiçamento de Poze, se amplifica na construção da contranarrativa criada em “Desabafo 2” e culmina na interatividade após sua publicação, como veremos mais à frente, no próximo intertítulo.

A segunda dobra, sendo esta a que evidencia a singularidade de “Desabafo 2”, é o rompimento da lógica do videoclipe como um mero anúncio da música como produto, inclusive porque tal música não foi previamente planejada, de modo que tal vídeo jamais poderia ser pensado sob uma lógica de mera peça de divulgação; aqui, falamos de um manifesto de Poze do Rodo, produzido e publicado de forma urgente, no “calor do momento”, como contra-ataque estético às imagens geradas na prisão do artista. Aqui ambas as dobras se complementam, uma vez que uma obra como essa só poderia ser criada no momento em que vivemos, no qual as facilidades tecnológicas de filmagem, edição e divulgação estão à mão do artista (sem ou com poucos intermediários), desconstruindo a lógica anterior de produção industrial a que os artistas se viam submetidos, na qual todas as estruturas técnicas, bem como o tempo de produção, eram maiores e mais caros, sem a possibilidade de tal contra-ataque estético na velocidade necessária, uma velocidade de notícia, de pauta quente.

Tal contra-ataque não é eficiente por negar as imagens de suposição de criminalidade a que o artista foi submetido; pelo contrário: a narrativa que é construída as abriga, de modo a, tanto documentar e contextualizar a violência ocorrida, quanto usar essas mesmas imagens para sustentar sua resposta, com base nos desdobramentos dos fatos, também registrados em vídeo. Sobre a suposição de criminalidade, Tarcizío Silva nos diz:

Suposição de criminalidade. No caso das populações brasileiras, esta é uma das microagressões mais pervasivas. Trata da suposição de que uma pessoa racializada tem mais chance de ser “perigosa, criminosa ou desviante, com base em sua raça”, e suas manifestações presenciais são bem conhecidas pela população negra. (SILVA, p.42, 2022)

A maneira como o diretor do vídeo Igor Vargas e o produtor musical Portugal no Beat evidenciam e questionam essa suposição de criminalidade é, tanto no campo da imagem visual, reproduzindo vídeos da abordagem policial – agressiva, na qual o MC sem camisa é algemado dentro de sua casa – e a cobertura jornalística da prisão – espetacularizada – em preto e branco, desfocadas e em baixa qualidade;  quanto no campo da imagem sonora; a voz da jornalista que cobre a prisão em uma das notícias veiculadas na mídia tem seu pitch distorcido de forma exagerada para o agudo, causando estranhamento e tirando credibilidade da forma como, e do que é dito sobre a prisão. A notícia “oficial” aqui perde credibilidade e vira piada na mão dos artistas.

Em um corte, passamos à imagem de Marlon indignado, já liberto, dando seu depoimento para a rede Record de televisão:

Eu tive minha luta, fui atrás, corri, pra construir meu castelo. Não é com dinheiro de nada de errado não. É com a minha luta, com o meu choro, valeu? Mais uma vez provando pra vocês que eu sou artista. Então para de me perseguir. Me deixa em paz, porra.

(MC POZE DO RODO em entrevista à Rede Record de Televisão, em 3 de junho de 2025)

Aqui a imagem, ainda em preto e branco, entretanto é limpa, em alta qualidade de definição, bem como o áudio da voz do artista, conferindo firmeza, indignação e um sentido de reivindicação de dignidade ao emissor da mensagem.

IMAGEM – Prisão do MC Poze do Rodo

          

   

FIGURA 1 – Print de tela do videoclipe “Desabafo 2” de MC Poze do Rodo

As sequências seguintes, já com a letra da música, que relata tais acontecimentos, passa a ser colorida, como a passagem de um outro tempo, já superado – um pesadelo, talvez – para o presente da situação, na qual se vê a imagem da placa do Complexo Penitenciário de Gericinó, onde Poze ficou detido, muito brevemente, como quem se despede sem saudades. Tal imagem é substituída por uma sequência de imagens de distribuição de cestas básicas realizadas pelo artista em áreas carentes, seguidas do reencontro deste com sua família, e por fim, uma longa série de takes do artista retornando para casa, com a metade superior do corpo para fora do teto solar de um carro de luxo, em cortejo, acompanhado por seus fãs e apoiadores, pelas ruas da cidade, parte a pé, parte em motocicletas, e até mesmo em uma carroça, como ocorre com um esportista vencedor – um dos heróis de nosso tempo – ao retornar para casa após uma conquista. Seu desfile é acompanhado também por carros de polícia, helicópteros, porém agora, cumprindo função de escolta, provendo algum sentido de manutenção de ordem social, agora “a serviço do artista”. Nas imagens Poze está, a princípio. com uma camiseta branca, mas logo aparece já sem camisa, desnudo da cintura para cima.

          IMAGEM – Desfile em comemoração à soltura do MC Poze do Rodo

     FIGURA 2 – Print de tela do videoclipe “Desabafo 2” de MC Poze do Rodo

No tocante a este aspecto, é importante destacar tal desconstrução; vamos da imagem do criminalizado, pego desprevenido e sendo detido no espaço privado de seu lar, porém privado da dignidade de se vestir adequadamente para se apresentar à polícia, para a imagem do herói, festejado, agora sem camisa por escolha própria no espaço público, porque está à vontade, se vê entre os seus, como se estivesse em sua comunidade. A cidade, após seu período de privação de liberdade, volta a ser sua, e ele, da mesma forma, se reintegra à cidade.

E aqui voltamos à agência das pessoas em relação à sua prisão sob a forma de compartilhamento: o que torna tão verdadeira e efetiva a existência do videoclipe “Desabafo 2’ enquanto manifesto artístico e político, são os desdobramentos que o mesmo confirma: sua prisão causou enorme comoção e debate nas redes, o que gerou engajamento, levando pessoas impactadas pela obra de Rodo à ação: estas pessoas – ou ao menos parte delas, as que moram na cidade do Rio de Janeiro – e que exerceram pressão para sua soltura nas redes, estavam presentes no momento de sua libertação, dando esteio para sua soltura; quando o videoclipe é lançado, uma nova onda de apoio se configura através do engajamento da audiência: em menos de 24 horas o vídeo tem mais de 900.000 visualizações, e no momento da escrita deste texto, menos de três semanas após o lançamento, seus números passam de 8.362.673 acessos.

IMAGENS DE RACISMO E IMAGENS DE RESISTÊNCIA

  

Para tratar de “Desabafo 2” e como o racismo e a luta antirracista, se instauram nas redes, as atravessam e ensaiam um falso movimento de retorno para a realidade material – falso porque ao fim e ao cabo tais forças nunca deixaram de habitá-la -, mas que encontram nas redes digitais condições para sua potencialização pelas imagens geradas e compartilhadas nelas, analisaremos duas ocorrências relacionadas a tudo o que o vídeo trata. Antes disso, entretanto, consideremos o pensamento de Tarcízio Silva a partir de uma perspectiva mais ampla:

A desumanização, o resgate ou a manutenção de humanidade plena dos indivíduos passam por entender as contranarrativas em jogo, tanto como história quanto como projetos de coletividade. Podemos conectar o pensamento antirracista sobre a tecnologia não apenas como crítica, mas também em prol de novas emergências que tenham como prerrogativa rejeitar potenciais de opressão. (SILVA, p. 210, 2022)

            Assim, se faz necessário olhar para a difusão de um acontecimento de cunho racial, social, mas também midiático nas redes com este olhar, que não separa episódios de racismo e suas repercussões – inclusive virtuais – como fato isolado, mas sim como partes integrantes da vida, com implicações e consequências que vão de um lado a outro, entre a realidade material e as redes digitais. Feita tal consideração, continuemos com a análise, agora, entretanto, em caráter comparativo, entre os comentários de dois vídeos distintos.

Como há um recorte de público próprio do artista em suas publicações, antes de olhar para as reações em rede de seus fãs nos comentários da própria publicação de “Desabafo 2”, propomos uma visada às reações e comentários à prisão de Poze do Rodo em uma notícia da prisão do artista no Jornal SBT Brasil, referente à edição do dia 29 de maio de 2005 e postada pela emissora SBT em seu canal de notícias no Youtube “SBT News”. O intuito é olhar para um outro recorte de público, e como tal público reagiu ao ataque de criminalização sofrido pelo cantor. Assim, ao olharmos para uma das manifestações do ataque, conseguiremos dimensionar a força de “Desabafo 2” enquanto contra-ataque estético.

Ao considerarmos um pequeno recorte dos comentários da notícia postada pela emissora de TV, nos deparamos com a quase total homogeneidade de opiniões e gracejos de sua audiência como: “Imagina os policiais chegando lá e falando “fica na pose”’; um outro usuário da plataforma o desqualifica: “Como pode um sujeito desse sem talento nenhum ser famoso, ter fãs e ganhar milhões? Ô país miserável!!”; um terceiro dispara: “Novidade nenhuma. Pra um país que endeusa esses animais”; a lista de gracejos segue: “O cara voou tão alto que acabou caindo atrás das grades kkkkkkkk”; ou ainda, se referindo ao trecho de “A cara do crime (nós incomoda)”, um dos sucessos do cantor: “”Ela fala que quer crime, eu sou criminoso” 🎶 kkkkkkkkkkkkkkkkk.”

E os comentários seguem entre o tom de deboche, como endosso à criminalização de Poze, e o desmerecimento à sua música e à sua pessoa. Silva, ao traçar uma taxonomia do racismo online em seu livro “Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais” (2022), nos aponta diversas categorias de racismo, mas daremos especial atenção a dois tipos nesse caso assim definidos pelo pesquisador:

Micro insultos  – texto, vídeo, imagens, símbolos, atribuição de nível de inteligência, cidadão de segunda classe, patologização da valores culturais e suposição de criminalidade.

Vicária – texto, vídeo, imagens, símbolos, agressões verbais ou visuais incluindo piadas sobre um grupo étnico de uma pessoa, venda de livros e músicas racistas.

IMAGEM  – Comentários jocosos na rede relativos à prisão de Poze do Rodo

FIGURA 3 – Print de tela da notícia “MC Poze do Rodo é preso acusado de envolvimento com facção criminosa no RJ – SBT Brasil (29/05/2025) publicada no canal SBT News no YouTube.

Assim, é possível identificar, tanto manifestações de caráter micro insultantes, quanto vicárias em relação a Poze do Rodo, sempre embasadas – no subtexto – naquilo que o estilo de música feito por ele representa: música periférica, negra, e portanto, sob esse viés racista, intelectualmente inferior e criminosa. Assim, a prisão de um MC de funk, negro e de origem periférica, independentemente de ser justa ou injusta, se torna, de forma automática, digna de piadas, desmerecimentos e condenações primárias sob uma lógica estritamente racista e discriminatória nas redes digitais.

Feito este desvio necessário, podemos retornar ao objeto da análise: o videoclipe de “Desabafo 2”, que foi recebido em tom de celebração e de apoio por parte dos fãs do artista e da comunidade funkeira como um todo. Frases como “MC NÃO É BANDIDO! PZ ✍🏽🙏🏽”; – e que consta do próprio manifesto -, “‘O que faz eles tremer é o brilho do meu olhar…’ Pra cima PZ 🚀🏁✊🏽’”; e ainda: “Já ouvi essa música umas mil vezes. Isso me viciou ❤️🎉” dão o tom dos comentários na publicação do vídeo. O nível de engajamento também evidencia a força da obra; enquanto a publicação da notícia citada anteriormente com os comentários depreciativos soma 297.559 visualizações na data de escrita deste texto, como já dito “Desabafo 2” soma mais de 8 milhões e meio de visualizações. Tomando essa métrica como referência, é possível ter uma noção da proporção do engajamento que um contra-ataque ao ódio, feito de forma bem articulada pode alcançar, quando pessoas em situação de borda se veem representadas por um manifesto artístico que de contempla problemas que também as atinge – como abusos policias e racismo -, e isso as mobiliza.

IMAGEM  – Comentários de apoio e aprovação a “Desabafo 2”     

FIGURA 4 – Print de tela de comentários na publicação de “Desabafo 2” no Youtube

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

O que percebemos, por meio da articulação entre arte, política e mídia, sob uma análise de borda, que desloca o objeto em análise de uma perspectiva hegemônica para um campo instável e em crise em que tal vídeo se inscreve, como preconiza a abordagem das extremidades de Mello, é que o videoclipe “Desabafo 2” de MC Poze do Rodo opera como contra-ataque às imagens de criminalização, não apenas respondendo à violência simbólica que tentou sumariamente enquadrar o artista como criminoso, sem a tramitação devida de um processo legal, mas também inscrevendo um novo corpo e uma nova narrativa no imaginário social — uma narrativa de superação, força comunitária-coletiva e reinvindicação de dignidade. Ao fazer isso, o clipe reafirma o funk como linguagem estética e política pulsante, que resiste à humilhação e opera como potência cultural nas bordas da cultura hegemônica.

Outra contribuição da obra videográfica em questão, é a de criar um importante precedente catalisador de uma manifestação popular potente em torno de uma injustiça cometida com um artista negro, em um gênero musical que não apenas nasce, cresce e caminha junto com o povo periférico, mas que também sofre junto contínuas ameaças e interdições. Assim, quando o direito de liberdade de expressão sofre ataques, e os canais de comunicação hegemônicos assumem posturas enviesadas, negando a possibilidade de uma cobertura imparcial dos fatos, tal precedente mostra que os artistas do funk, em união com o seu público, conseguem gerar e compartilhar contranarrativas estéticas que possam disputar espaço com injustas imagens de criminalização pré-concebidas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CYMROT, Danilo. O funk na batida: baile, rua e parlamento. São Paulo: Edições Sesc, 2022.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MC POZE DO RODO. Desabafo 2. Direção: Igor Vargas. Produção musical: Portugal no Beat. Mainstreet Records; Maze Company, 2025. Videoclipe (4min30s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XXXXXXX

 Acesso em: 22 jun. 2025.

MELLO, Christine. Abordagem das extremidades entre linguagens e mundos. Extremidades.art, 7 nov. 2024. Disponível em: https://extremidades.art/x/christinemello/2024/11/07/abordagem-das-extremidades-entre-linguagens-e-mundos/. Acesso em: 22 jun. 2025.

MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Senac São Paulo, 2008.

SILVA, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Editorial Medusa, 2022.

SBT NEWS. MC Poze do Rodo é preso acusado de envolvimento com facção criminosa no RJ – SBT Brasil (29/05/2025). Corte de vídeo do telejornal SBT Brasil, edição de 29 de maio de

2025. Vídeo (3min09s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eV1PQ_la1lI

Acesso em: 22 jun. 2025.