LOCALIZANDO O OBJETO
Clique aqui para assistir ao vídeo de “Fatos do Funk”
SOBRE CÓDIGOS
O funk, em suas letras e em seus jargões, que se constitui majoritariamente de gíria periférica, se mostra pouco ou nada cifrado para aquele que participa e vive essa cultura (ou seja, quem está de dentro do círculo).
Entretanto, o fenômeno se inverte para aquele que o observa de fora: palavras como “bigode”, “kit”, “grau”, “ladrão”, “bruxaria”, “magrão”, “automotivo”, “ritmado”, “Helipa”, “Marcone”, “fita”, “lean”, “fluxo”, “Chevette”, “embrazar” ou “DZ7” entre outras expressões, são mal compreendidas, quando não totalmente incompreendidas.
Isso evidencia de partida a necessidade do entendimento de lugar do qual se observa o objeto, bem como de quem observa este objeto (e os discursos que este objeto carrega).
LINGUAGEM
Tão importante quanto apreender os aspectos sociais em torno da produção do funk e de sua cultura, é reconhecê-lo como qualquer outro estilo musical, com características próprias, sejam essas características positivas ou não, para assim se fazer uma crítica coerente com o que o estilo de fato é, com suas virtudes e vicissitudes.
Dentro desse entendimento, é necessário localizar o funk como música eletrônica, periférica, brasileira, inscrita dentro da cultura Hip-hop.
Desconstruindo assim, equívocos em torno da qualidade da elaboração das letras, e supostas “pobrezas melódicas ou harmônicas”, bem como saturações, sejam no tocante ao aspecto percussivo, seja no uso não balanceado de graves e agudos em mixagens.
O mesmo vale para as letras: bem como em boa parte da música eletrônica comercial mundo afora, a voz no funk muitas vezes assume posição de elemento musical, no caso, ritmico, ressignificando palavras numa espécie de esvaziamento de significados do significante, as transformando via repetição em ritmo também, que age sobre o corpo, como no famoso caso do sentasentasentasentasentasentasenta… exemplo este muitas vezes utilizado por críticos que se opõem ao estilo. Erro de leitura: o entendimento da construção de uma música eletrônica muitas vezes passa mais pelo corpo que pelo crivo puramente racional. Assim, é preciso, antes de mais nada, ao lidar com o funk, conseguir vê-lo como ele é.
CRUZANDO PENSAMENTOS
“o vídeo, em sua lógica de escritura eletrônica, acrescentou à experiência o potencial crítico da linguagem, chamando a atenção para a dimensão temporal-performática da imagem e do som em movimento, para o seu processamento e para a hibridez das formas no campo da arte” (MELLO, p.26, 2008)
“As últimas décadas foram acompanhadas por uma crise nas concepções ontológicas fundamentalistas que significavam as identidades nacionais, bem como as regionais. Nesse sentido, acompanhamos uma perda da importância das culturas locais à medida que tais culturas são reposicionadas diante da globalização, da fragmentação, das fronteiras nacionais e do avanço dos meios eletrônicos de comunicação” (CARVALHO LOPES comentando Canclini, p.79, 2011)
Logo, o jogo que estabelecemos é o de entendimento do potencial crítico do vídeo como lugar de fissura, e não hegemônico, bem como o lugar de uma possível leitura de identidade fora do fundamentalismo, que exclui, estereotipa e diminui. A escrita aqui deixa de ser de um terceiro observador, mas de um partícipe, protagonista e periférico, que se apropria da linguagem videográfica para se dizer, se contar, se constituir.
QUESTÕES EM TORNO DE “FATOS DO FUNK” (LETRA)
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QUESTÕES EM TORNO DE “FATOS DO FUNK” (VÍDEO)
“Tal perspectiva de análise tem a capacidade de refletir o seu alto grau de retroalimentação entre os mais variados procedimentos e linguagens” (MELLO, p.27, 2008)
Mello ainda, em seu “Extremidades do Vídeo” ao citar Júlio Plaza e Monica Tavares:
“O método experimental opera com o conhecimento transmitido pelos sentidos. (…) o que define essa prática diz respeito a não existir plano artístico nem projeto preconcebido. Para tanto eles afirmam:
o produto é realização direta, concomitante à criação. A criação leva à descoberta. Opera-se ludicamente com os meios. É um processo que vai da prática à teoria. […] A intenção desse método não está na obra acabada, mas sim no ato de fazer.
O que traduz a lógica de produção do vídeo, que não foi roteirizado ou minuciosamente planejado: havia algumas ações pensadas pelo artista, que foram vividas e testadas e adaptadas no ato, incluindo o que poderia surgir, bem como descartando o que não funcionava, assim o processo de edição começou já no ato da feitura.
CONTAMINAÇÕES ENTRE MÚSICA E VÍDEO
“Embaçado” é o nome do álbum que contém essa música. É importante, no entanto, entender o que significa “embaçado”: No dicionário encontramos os seguintes significados para a palavra:
1.que se embaçou; sem brilho, embaciado.
2.sem cor, pálido de susto ou medo.
Para além desses significados, na gíria, ainda encontramos duas outra acepções para o termo, sendo a primeira, o sentido de dificuldade, complexidade ou mesmo inviabilidade de uma situação:
“e aquele rolê lá, vai desenrolar?”
“Vai não mano, tá embaçado”
Outro sentido, é o uso da palavra “embaçado” como adjetivo, usado para designar alguém muito bom naquilo que faz:
“Truta, não desafia ele, que no 1×1 ele é embaçado!”
Assim, a inscrição da palavra “embaçado” assume múltiplos sentidos dentro do contexto de encerramento do vídeo como parte, e do álbum musical como um todo.
Camadas que se contaminam com o ruído branco, presente, tanto no vídeo, quanto na música, quanto em um filtro de imagem após o anúncio de um suporto término abrupto de jornada anunciado por uma voz de GPS: nesse momento Macna é por seu suporte e está só, seja num sentido de abandono, seja num sentido de autonomia conquistada.
O ciclo, no entanto, pode ser invertido se o álbum começar a ser ouvido por “Fatos do Funk”, deslocando a ordem em uma música e seguindo a audição normal a partir daí*, dando um sentido de abandono e retomada.
*Na seguinte ordem: 10, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9.
REFERÊNCIAS
D’ANDREA, Tiaraju Pablo. A formação das sujeitas e dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Editora Dandara, 2022.
LOPES, Adriana Carvalho. Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, Faperj, 2011.
MELLO, Christine (org.). Extremidades: experimentos críticos – redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.
SOUZA, Thiago de. Tudo o que você sempre quis saber sobre Funk… mas tinha medo de perguntar. São Paulo: Tipografia Musical, 2023.
VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.