Christine Mello
A partir dos procedimentos investigativos da videoinstalação
Os passos semeiam o caminho, de Cristiana Miranda (Rio de
Janeiro, 1966), são observados certos modos como as
tecnologias de produção e circulação da imagem e do som são
colocadas em crise. A artista investiga as antigas trilhas
indígenas existentes na Serra do Mar, localizadas no estado do
Rio de Janeiro, construídas antes mesmo da invasão dos
europeus. Por meio de caminhada e de experiência audiovisual
expandida, busca recuperar os corpos, as presenças e as
histórias não apenas das nações indígenas, mas também dos
inúmeros quilombos que com elas viviam em colaboração
durante o período colonial e imperial, reconectando-os, com tal
gesto, ao tempo presente. A pergunta que se coloca é: como os
procedimentos investigativos de desconstrução e
contaminação tensionam a investigação poética por meio de
outros modos de se pensar as tecnologias de produção e
circulação da imagem e do som?
Trata-se da análise de um conjunto de operações (2024-2025) relacionadas ao
processo poético-artístico de Cristiana Miranda ( https://vimeo.com/crismiranda), que
culminam com a apresentação da obra em 2026. Tais procedimentos investigativos
combinam experimentação e pesquisa crítica, baseados em:
residência artística na região da Serra do Mar, no interior do Rio de Janeiro;
pesquisa histórica de arquivo;
pesquisa técnica de captura e processamento de imagem fílmica;
experiência performativa de caminhada em antigas trilhas indígenas;
captura de imagens, sons e resíduos durante as caminhadas;
revelação e edição do material;
levantamento e análise das condições tecnológicas de como deverá ser
projetado o ambiente instalativo.
Estes procedimentos investigativos são relevantes na constituição de percepção
e experiência das camadas de ancestralidade que destacam a Mata Atlântica como
monumento apagado, invisível, de muitas culturas que nela tiveram existência. Neste
contexto, o interesse pela captura de imagens, sons e resíduos nos territórios da
floresta reside menos na documentação audiovisual das caminhadas e mais na
incorporação de múltiplas temporalidades a serem agenciadas na videoinstalação.
O problema da imagem e som em crise se estabelece, desse modo, na
prevalência dos regimes de presença de tais procedimentos em detrimento dos seus
regimes de sentido. A imagem e som são instituídos, assim, nas rupturas com os seus
planos de visualidade e sonoridade, se tornando relevantes por meio da performance
da artista na floresta, como estratégia de apresentar mais o que presentificam do que
mostrar o que representam.
Para abordar tais questões, destacaremos qualidades operatórias e conceituais
relacionadas a tais procedimentos investigativos, no caso, a desconstrução e a
contaminação, com o objetivo de refletirmos certos modos como as tecnologias de
produção e circulação da imagem e som se expressam em crise, nesta obra, por meio
das interrelações entre a performance,o audiovisual expandido e a arte contemporânea.
Trata-se de contextualizar uma esfera de experimentação, em que há a
consciência de que os modos hegemônicos relacionados a tais tecnologias perdem
hoje em dia a potência de comunicação, a experiência de encontro, a condição de
fazer vibrar a linguagem. Com isso, diante de imagens e sons contra-hegemônicos, é
necessário, na prática artística, a retomada de procedimentos investigativos, como
estratégia de ressignificação, voltados ao encontro de outras formas de perceber e
experimentar territórios e temporalidades presentes na Mata Atlântica.
Em sua fase atual de experimentação, Cristiana Miranda realiza residência
artística e investiga as antigas trilhas indígenas existentes na Serra do Mar,
localizadas no estado do Rio de Janeiro, construídas antes mesmo da invasão dos
europeus. A partir da caminhada nessas trilhas, ela gera tecnologias muito singulares
de captura de imagem e som, com o desejo de os colocar em circulação por meio
tanto de gestos performativos gerados com as caminhadas e a escuta atenta de seus
passos na floresta quanto experiência audiovisual expandida, na arquitetura pensada
para o espaço instalativo, para a videoinstalação.
Embora relevante em todo o processo de caminhada nas antigas trilhas
indígenas, a captura das imagens e sons situa-se como lugar de contato entre
realidades diferentes, como produção de diferença e heterogênese, em especial no
que se refere ao contato das imagens das ruínas da floresta e dos saberes ancestrais
dos povos originários e das comunidades quilombolas com o corpo da artista e com
a experiência corpórea dos visitantes da videoinstalação. Com as passadas nas
trilhas, há o contato ao longo do caminho com sonoridades próprias ao corpo da artista
em deslocamento e ao corpo da floresta. Desse modo, sua captura revela-se menos
estratégia de domínio sonoro em torno de tais trilhas e mais de estranhamento e
afecção, apresentando-se como procedimento investigativo acerca do corpo e da
abordagem do outro.
FIGURA 1: Caminho de Peabiru. Serra do Mar, Mata Atlântica. Foto Gessiane
Pereira.
Os procedimentos desconstrutivos da investigação poética, de modo geral,
giram em torno da desmontagem de um significado para se obter outro. A corrente
desconstrutiva pretende que a apreensão da realidade se dê pela experiência
sensória, sendo o processo de descoberta nela dimensionado como campo de
testagem e experimentalismo.
A desconstrução como procedimento investigativo na proposta instalativa Os
passos semeiam o caminho, de Cristiana Miranda, evoca, em um primeiro momento,
o deslocamento de um estado da imagem e do som de um regime representacional
para um regime de presença, de uma narrativa discursiva para uma experiência
performativa e sensorial, e, em um segundo momento, a reversão, ressignificação e
expansão dos limites criativos das imagens e dos sons, colocando-os em crise, em
direção à reconstrução de outro imaginário em torno da presença da floresta, dos
povos indígenas e das comunidades quilombolas.
Destaca, desse modo, os deslocamentos poéticos das imagens e sons
capturados pela artista nas caminhadas pelas trilhas indígenas, cujo contexto
histórico remete ao período pré-colonial, colonial e imperial, para sua ressignificação
na atualidade sob a forma de crítica à colonialidade.
Em sua perspectiva conceitual-poética, as imagens captadas em 16 mm são
feitas sob a forma de experimentações em película por meio de impressão direta de
elementos residuais (como folhas e musgos) da floresta sobre emulsão fotossensível.
Com os sons captados dos ruídos e dos passos dados pela artista na floresta,
são feitas experimentações sonoras que desconstroem a separação humanonatureza, objetivando constituir um ambiente cinemático-multissensorial-instalativo
que envolva o público e possibilite, com isso, ampliar a experiência de presença da
floresta por meio do atravessamento sonoro da mesma em seus corpos.
FIGURA 2: Processo de impressão botânica por contato em película 16 mm, de
Cristiana Miranda.
Em tal tipo de prática artística, as conhecidas tecnologias hegemônicas de
produção e circulação da imagem e do som são desconstruídas em prol tanto de
saberes descentralizados acerca da produção cinematográfica quanto da
incorporação da sensorialidade por meio de agentes botânicos e temporalidades
ancestrais. Busca-se, com isso, recuperar os corpos, as presenças vivas e as
histórias não apenas das nações indígenas, mas também dos inúmeros quilombos
que com elas viviam em colaboração, ao longo da Mata Atlântica, durante o período
pré-colonial, colonial e imperial, reconectando-os, com tal gesto, ao tempo presente.
O campo de problemas materiais e intersubjetivos é articulado, portanto, entre as
afecções produzidas no decorrer das caminhadas, as experimentações cinemáticas e
sonoras e o ambiente instalativo. Por meio do corpo da artista e de seus passos,
sensações e ruídos recolhidos ao longo das antigas trilhas da Serra do Mar, assim como
de experimentações com linguagens audiovisuais analógicas e digitais, o efeito dessas
caminhadas objetiva provocar reconexão tanto no processo de criação da artista quanto
em quem acessará e vivenciará a experiência na videoinstalação.
Significa situar a experiência a partir do efeito dos atravessamentos do corpo em ruína
da floresta, das sonoridades do corpo ancestral dos povos originários e das comunidades
quilombolas, que integram um outro tempo, em suas relações com o corpo da artista e do
público visitante, que integram o tempo presente.
Em meio à coexistência de tais temporalidades e corporeidades múltiplas, o trabalho
suscita a potência da imagem e do som por meio da performatividade da caminhada ao longo da
floresta com o objetivo de ressignificar o cinema experimental, o cinema expandido e a arte
contemporânea em suas curvas temporais e presenças vivas.
Na partilha com as experiências materiais e intersubjetivas realizadas na floresta, como
momento de troca e sensorialidade, Cristiana Miranda propõe em seus procedimentos
investigativos desconstrutivos que o espaço da exposição – no caso, da videoinstalação
– compreenda o momento de reorganização do espaço sensório da caminhada, assim como
a expansão do plano multissensorial da imagem e do som para o plano do ambiente junto
ao público visitante.
Nessa direção, a proposta da arquitetura instalativa de Os passos semeiam o caminho
pretende explorar as condições tecnológicas de como deverá ser projetado o ambiente
sensório assim como pensar a estratégia formal de instalação de múltiplas telas, preenchidas
tanto por imagens em movimento e som ambiente quanto por sensores sonoros que
presentificarão a presença dos corpos dos visitantes em suas passadas no espaço expositivo.
A ideia, com isso, não é a de promover a disjunção entre o espaço da floresta e o espaço instalativo, mas de gerar uma conjunção, um gesto comum, in situ, entre um e outro espaço, criando, desse modo, um ambiente vivencial, de caráter imersivo-emersivo, onde o caminhar pela floresta seja
experimentado sob a forma de encontro, produzido por meio de corpos, imagens e sons,
afetos e relações.
Em sua forma expositiva, a investigação poética propõe colocar em crise tecnologias
de produção e circulação da imagem e do som ao reivindicar a desconstrução do plano visual
e sonoro das antigas trilhas existentes no território da Mata Atlântica, baseado em seus
regimes de sentido, na sua representação, e constituído de acordo com a visão da
modernidade ocidental, para estabelecer, com esse mesmo território, predominantemente
relações recíprocas e conexões entre ancestralidades e seres vivos humanos e não humanos,
como animais, árvores, florestas e até montanhas, pedras e espíritos, baseados nas antigas
trilhas.
FIGURA 3: Santana das Palmeiras na Estrada do Comércio, Nova Iguaçu, Rio
de Janeiro.
Para Miranda, como uma percepção desperta, a caminhada é um tipo de
agenciamento que busca simultaneamente o encontro consigo mesmo e com o
coletivo. Sua proposta poética diz respeito, portanto, ao acesso a uma atenção
delicada, a uma vivência sensível, de cunho relacional, capaz de presentificar as
imagens e sons sob a forma do percurso do corpo pelo caminho, para uma conexão
simultaneamente coletiva, corpórea e imagética com o lugar.
A temática da experimentação material junto à investigação artística de Cristiana
Miranda é aqui observada tomando como princípio a contaminação entre linguagens.
Nessa direção, é importante observar esse procedimento investigativo como um tipo
de ação estética descentralizada em que a potência das linguagens tem lugar a partir
da ampliação das formas de contato entre linguagens diferentes. Para tanto, a
videoinstalação Os passos semeiam o caminho propõe relacionar a performance dos
corpos entre a floresta e a videoinstalação de modo que imagem e o som sejam
operados em camadas temporais descontínuas, porém contaminadas entre si, a partir
de conexões sensórias de estratos e fendas entre diferentes temporalidades,
comunidades e linguagens.
Na concepção de Cristiana Miranda, a estética de colocar em contato diferentes
processos de temporalização do espaço baseia-se em uma prática fílmica que usa a
tecnologia analógica para encontrar novos pontos de conexão entre cinema e conceitos
políticos, buscando uma libertação das antigas formas de ver e experimentar o mundo.
Nessa prática de criação audiovisual, o filme é utilizado como uma ferramenta artística
capaz de comunicar, por meio de múltiplas materialidades, corpo e terra, humano e não
humano.
FIGURA 4: Processo de impressão botânica por contato em película 16 mm, de Cristiana Miranda
Conforme o pensamento artístico de Cristiana Miranda, tal procedimento
investigativo de contaminação se opõe, portanto, ao ilusionismo do cinema narrativo
hegemônico em prol de um cinema da presença. Para ela, na estética do contato, ao
contrário, o filme é utilizado como superfície, mais do que como janela transparente,
e as práticas de impressão da imagem não se fazem unicamente através da câmera
de filmar. Nesse tipo de estética fílmica presente em sua investigação, a contaminação
entre corpos e temporalidades bem como as imagens geradas pela impressão direta de
elementos sobre a emulsão fotossensível subvertem o aspecto mimético da
representação fotográfica ao dispensar a primazia da câmera e criar por meio de
regimes de preseça as impressões corpóreas, os atravessamentos de tempo, mais
do que representações em perspectiva (KNOWLES, Kim. Esthétique du contact dans
la pratique contemporaine du film photochimique. In: DELLA NOCE, Elio; MURARI,
Lucas (orgs.). Expanded nature ecologies du cinéma experimental. Paris: Light
Cone Editions, 2022, p. 64-66).
3.Considerações finais
Como um tipo de prática artística comprometida com a vida e seu entorno, a análise
dos procedimentos investigativos presentes da videoinstalação Os passos semeiam o
caminho mostra as estratégias da artista de desconstruir a primazia colonial dos campos
representacionais da visão e da audição em prol de ativar, intensificar, no visitante, regimes de
presença com a imagem e som, em suas contaminações, relações recíprocas e conexões entre
ancestralidades e seres vivos humanos e não humanos, como animais, árvores, florestas e até
montanhas, pedras e espíritos, baseados nas antigas trilhas indígenas.
A presente investigação artística de Cristiana Miranda traça, dessa maneira,
procedimentos conceituais-poéticos desconstrutivos e contaminados que situam a imagem e
o som em crise por meio da ativação de múltiplas realidades, da expansão de ecologias
midiáticas e do corpo em performance, em presença, assim como outros modos de se pensar
suas tecnologias de produção e circulação.
É movida pela compreensão de que a urgência não é ver ou ouvir melhor ou mais
claramente, mas sim, produzir passos, como pontos de tensão, em sua potência de linguagem
e de geração de outros mundos possíveis, que semeiem o caminho de forma diferente, de
um outro lugar, com mais consciência do processo.