Por outras imagens do mundo: arte, mídia e política 

Christine Mello (PUC-SP/UERJ)

Novembro, 2024

O presente estudo é parte integrante de uma investigação maior, desenvolvida a partir da Bolsa PAPD (2022-2024) concedida pela Fundação Carlos Chagas/FAPERJ, sob a forma de intercâmbio interinstitucional entre a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, em seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (Linha de Pesquisa Regimes de sentido nos processos comunicacionais) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, em seu Programa de Pós-Graduação em Artes/PPGArtes (Linha de Pesquisa Arte, imagem e escrita), sob a forma de Pós-Doutorado, com supervisão de Sheila Cabo Geraldo, a quem agradeço em conjunto a Luiz Claudio da Costa. 

Em um contexto histórico da globalização relacionado às dimensões de fim do mundo, ao Antropoceno e à crise da sustentabilidade e da biodiversidade, como pensa o líder indígena, filósofo e ambientalista Ailton Krenak [1953] em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), assim como em um cenário que permite à filósofa Déborah Danowski [1978] e ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro [1951] lançarem a questão “Há mundo por vir?” (Danowski e Viveiros de Castro, 2017), encontramos um estado de crise, um alarme. 

A partir do signo das extremidades, que prática da crítica é possível constituirmos diante de tal plano de realidade cotidiana? Diante desta condição, observamos que signo das extremidades se faz presente no cotidiano concreto, não podendo ser considerado, portanto, um estado de exceção. 

Em tempos extremos, a abordagem das extremidades, por mim desenvolvida desde 2004, compreende um instrumental de leitura de obras artístico-midiáticas. Trata-se de atividade crítica decorrente da análise de processos culturais, artísticos e midiáticos bem como das relações estabelecidas entre eles, dando ênfase à produção contemporânea, não normativa, de índole experimental.  

Em uma era associada a contínuos deslocamentos, à decomposição e à incerteza, a escrita da crítica é ativada por esse instrumental de leitura como experimento, na tentativa de produzir situações de risco no que diz respeito a leituras de trabalhos em trânsito, limítrofes e instáveis. 

Não se trata de abordar a noção de extremidades a partir do ideário do apocalipse bíblico, mas de compreender que, em nossa condição atual, analisar práticas que em seu estatuto ético-estético-poético procurem falar de outros mundos possíveis. 

Nesse âmbito, imaginar mundos, pensar no porvir, no futuro, exige a revisão dos modos de existência. Significa, portanto, como analisa Bruno Latour na apresentação do livro de Danowski e Viveiros de Castro (2017, n.p), um ponto de virada, o único possível, pelo qual é possível começar, a saber, pelo fim. Sob uma perspectiva limítrofe como essa, notamos que os discursos com as “extremidades do fim do mundo”, com os “extremo dos mundos”, implicam não apenas o reconhecimento da mudança de mundos, mas a instauração da ideia de uma outra humanidade, de outros sistemas de organização de mundos baseados na diversidade, na mudança dos saberes e dos modos de agir. 

Com o objetivo de contribuir para o debate sobre o estado da crítica relacionado às intersecções entre arte e práticas midiáticas, a abordagem das extremidades introduz, dessa forma, possíveis modos de leitura crítica na contemporaneidade. 

Observa, para tanto, ações limítrofes entre as extremidades das linguagens e o extremo dos mundos, que possuem a capacidade de ressignificar, em especial, práticas relacionadas às redes audiovisuais, ao cinema, à performance e à arte contemporânea. 

Terra de Gigantes 

Diante de um contexto como este, o artista, curador e pesquisador Daniel Lima [1973] realiza a instalação imersiva “Terra de gigantes” (2023). Com direção geral, concepção, produção executiva, edição e projeto gráfico de Daniel Lima, o trabalho foi apresentado tanto 2023, em Guarulhos, com realização do Sesc Guarulhos, quanto em São Paulo, em 2024, com realização do Sesc Casa Verde, contando com uma grandiosa equipe. 

Nesta obra imersiva, somos profundamente atravessados por saberes, culturas e vidas afro-indígenas, por meio da imersão num ambiente cinemático transmutado em memória ancestral. Como os gigantes da Terra, a problemática principal do trabalho diz respeito à união entre povos negros e indígenas na luta por outros mundos possíveis. Contra as estruturas políticas de dominação e opressão, respondem com visões de mundo, estratégias de cura e resistência assim como produção imaginária. 

  1.  Abordagem das extremidades: 2004 – 2024

Figura 1: Imagem de divulgação da exposição Terra de Gigantes que aconteceu no Sesc Guarulhos em 2023, com concepção e curadoria de Daniel Lima e participação de lideranças e artistas negros e indígenas. (Fonte: https://www.sescsp.org.br/exposicao-imersiva-no-sesc-guarulhos-debate-o-corpo-negro-e- indigena-no-mundo-contemporaneo/) 

A partir de interatividade, projeções audiovisuais, sonoridades e cantos, coexistimos em “Terra de gigantes” com a presença performativa, nas múltiplas telas, de figuras míticas de gigantes, como a de David Kopenawa Yanomani [1956], xamã, líder indígena, autor com Bruce Albert do livro “A queda do céu” (2010). Com sua imagem projetada em grande escala, ele nos convida à escuta ao abordar a cosmovisão Yanomani em passagens como esta: “Quando a fumaça da epidemia sobe aos céus, o peito do céu, onde o coração respira, a fumaça da epidemia gruda ali. E pelo fato da fumaça grudar ali, o peito do céu se queima” (Davi Kopenawa Yanomani).

Na luta pela existência e sobrevivência, entre espíritos da floresta, seres viventes e não-viventes, entre mundos afrodiaspóricos e corpos negros, um dos pontos de tensão do trabalho é a cena “Linha de Fogo”, composta por doze metros de extensão. Ela torna a experiência mais intensa, propiciando ao público interação por meio de sensores de presença. No caso, o fogo remete paradoxalmente tanto às queimadas e à destruição da floresta amazônica, como imagem de fim do mundo, quanto aos quatro elementos fundamentais da natureza (entre o ar, a terra e a água), que permitem expressar poder espiritual, ritualístico e transmutação de mundos. 

Figura 2: Registro do espaço expositivo da exposição Terra de Gigantes que aconteceu no Sesc Guarulhos em 2023, com concepção e curadoria de Daniel Lima e participação de lideranças e artistas negros e indígenas. (Fonte: Imagem cedida pelo artista) 

No cerne de questões conflituosas como estas, o presente estudo busca destacar mudanças dos modos de agir por meio de práticas artísticas como as de Daniel Lima, assim como nos embates lançados por pensadores como Kopenawa, Krenak, Danowski e Viveiros de Castro. Sendo que para a análise de imagens de mundo, como veremos a seguir, interessa-nos observar, em especial, um tipo de território de disputa como o das plataformas em rede. 

Se para muitos imaginar o fim do mundo diz respeito a imagens apocalípticas, muitas vezes associadas ao Antropoceno, aqui articulamos tais dimensões caóticas com imagens em rede que implementam o regime de visualidade algorítmica operada por dados e que atuam com valores mortíferos, produzindo imagens de fim do mundo amplamente disseminadas nas redes sociais, como as apresentadas logo abaixo: 

Figura 3: Imagem ilustrativa para demonstrar um possível futuro apocalíptico resultado de tensões políticas e climáticas. (Fonte:https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2019/01/relogio-do-apocalipse-esta- dois-minutos-do-fim-do-mundo.html) 

Figura 4: Sequência de imagens que apresentam as queimadas que ocorreram na floresta amazônica, 2019- 2020. (Fonte: 1. https://www.brasildefato.com.br/2020/01/08/o-que-diferencia-os-incendios-na-australia-das-queimadas-na-amazonia/; 2. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/os-interesses-economicos- por-tras-da-destruicao-da-amazonia/; 3.https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/21/album/1566384483_259997.html#foto_gal_6)

Intersubjetividades tensionadas 

No entanto, outras imagens também nos interessam nos territórios das plataformas sociais: aquelas que impactam modos de existência pós-digitais. Trata-se de formas de operar as redes segundo a visão do pensador Achille Mbembe [1957] a partir da noção de “políticas da inimizade” (Mbembe, 2020), Estes tipos de imagens de fim de mundo se manifestam em fenômenos como as fake news, as deep fakes, o racismo algorítmico e os discursos de ódio, tão próprios às redes sociais. Para Mbembe: 

Nossa era decididamente se define pela separação, pelos movimentos de ódio, pela hostilidade e, acima de tudo, pela luta contra o inimigo, em decorrência da qual as democracias liberais, já então escorchadas pelas forças do capital, da tecnologia e do militarismo, estão sendo sugadas em um amplo processo de inversão. (Achile Mbembe, 2020, p. 76) 

Quer seja sob a forma da crise ambiental, do racismo estrutural ou da separação e do ódio que permeiam a sociedade, os agenciamentos operados com as extremidades situam a diferença como potenciais ameaças, como o lugar dos inimigos, produzindo confluências entre o espaço ético-estético-poético, promovendo a indistinção entre um espaço e outro, gerando um estado de trânsito e deslocamentos contínuos entre o espaço social, o espaçopoético- artístico e o plano da experiência sob a forma de produção de intersubjetividades. 

Como uma sociedade da inimizade, mais que uma crise ambiental, econômica e política, tais dimensões de mundo presentes na obra Terra de Gigantes de Daniel Lima, refletem tanto uma crise da “ideia de humanidade” (Krenak, 2019, p. 11) quanto uma “subjetividade contemporânea produzida na dobra financeirizada do capitalismo” (Rolnik, 2021, p. 22). Imagens de fim do mundo como imagens de um mundo em crise, relacionadas ao fim dos tempos, ao fim da civilização global-moderna, tensionam, portanto, a natureza micropolítica (Suely Rolnik, 2018) de um mal-estar que nos habita, assim como traduzem a crise planetária que vivemos no século 21. 

Nesse contexto, Ailton Krenak pontua que somos convocados a integrar um tipo de “humanidade zumbi” (Krenak, 2019, p. 26) que não tolera a fruição de vida em sua diversidade. É uma espécie de humanidade que se quer homogênea, na qual o consumo substitui a cidadania, que subtrai a capacidade imaginativa e de existência em sua pluralidade, que tanto “tira nossa alegria de estar vivos” (Krenak, 2019, p. 33) quanto limita nossa capacidade de conviver com outros mundos. Para ele, adiar o fim do mundo significa “expandir a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais” (Krenak, 2019, p. 31). 

Para problematizar a política de subjetivação baseada no tipo de “humanidade zumbi” que opera na contemporaneidade, mobilizada pela lógica do individualismo, das tecnologias de dados, da inteligência artificial (IA) e do consumo, típicas do neoliberalismo e do capitalismo globalizado, Suely Rolnik [1948] adverte que esse tipo de colapso da identidade, em que não há a escuta dos “efeitos desestabilizadores da presença viva do outro em seu próprio corpo” (Rolnik, 2021, p. 69), impacta a potência pulsional e restringe o “encontro com as forças que compõem o outro” (Rolnik, 2021, p. 27). 

Segundo Krenak, ter diversidade significa expandir nossa subjetividade, garantindo adiarmos o fim do mundo por meio da capacidade imaginativa, das “poéticas sobre a existência” e da capacidade “de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças” (Krenak, 2019, p. 33). Já Rolnik alerta sobre a subtração da força vital nas condições da linguagem do mundo, assim como sobre os impactos “nas condições de um ecossistema, não só ambiental, mas também social e mental” (Rolnik, 2021, p. 27). 

Por outras imagens do mundo 

Nesse cenário, observamos imagens do mundo como relações entre imagem e política, com o objetivo de assinalar seus valores mortíferos (como imagens de fim de mundo) e vitais (como inscrição de outros mundos). Temos como base, para tanto, a trama interdisciplinar que envolve os campos da arte, das linguagens digitais e da sociedade, em que as práticas artísticas tomam o mundo como possibilidade, nele reivindicando outras imagens. 

Trata-se de pensar o mundo a partir de suas imagens e de um outro lugar, em sua rede de relações entre arte, mídia e política 

Consciente da chamada “peste fascista” (Suely Rolnik), que não pode ser separada do racismo estrutural e dos “regimes do inconsciente colonial- patriarcal” (Suely Rolnik), observamos que a arte reage de forma ética para combater situações que engendram vulnerabilidades e traumas, como o racismo, a xenofobia, as desigualdades sociais e a discriminação de gênero. 

Tendo como princípio a noção de globalitarismo e a observação do mundo capitalista que habitamos, encontramos, na crítica à colonialidade, perspectivas teóricas de análise que despertam reflexões para ressignificarmos os campos da imagem e da arte em relação aos agenciamentos do mundo na contemporaneidade. 

Para o historiador de arte Hans Belting [1935-2023], especialista em teoria da imagem e arte contemporânea, a questão da arte nas mídias “põe-se de resto onde quer que os limites entre comunicação e informação sejam ultrapassados” (Belting, 2006, p. 243). Para ele: 

A pesquisa em arte é realizada hoje num ambiente em que as mídias técnicas das imagens marcam nossa imagem do mundo e nosso conceito de realidade, principalmente quando desconhecemos sua intenção ideológica propriamente dita. O conteúdo de informação que possuem ou apenas afirmam determina em geral a nossa disposição de nos envolver com eles. […]. Imagem e linguagem foram ambas inventadas como sistemas simbólicos com os quais os homens sempre se entenderam no que diz respeito ao mundo. (Belting, 2006, p. 242) 

Nesses tensionamentos, as práticas artísticas em suas relações com as práticas midiáticas respondem como um agente ativo capaz de ressignificar o sentido eco-político das imagens do mundo no século 21, como a força vital que anima, reconecta o corpo com o outro e faz vibrar. Oferecem, portanto, representações, performances e experiências diversas de mundo, assim como nosso lugar nele. 

Diante de tais realidades, perguntamos: De que modo a arte atravessa dimensões globalitárias de imagens do mundo quando “para uma grande parte da humanidade o fim do mundo já aconteceu” (Mbembe, 2020, p. 56)? 

Como Suely Rolnik nos diz, pelo afeto as práticas artísticas trazem a perspectiva ética, tensionam a presença vital, “a presença viva do outro em mim” (Rolnik, 2021, p. 69), situação em que o outro não se encontra fora do meu corpo, mas é uma presença vital nele. Buscam, dessa maneira, nos ambientes pertinentes às ecologias midiáticas em rede, desconstruir o aparato de controle, ferramenta central do autoritarismo, assim como mostrar a estrutura aberta do perverso dispositivo do globalitarismo, entre a tirania da informação e do capital, compreendido, como em Milton Santos, como o dispositivo hegemônico da sociedade no século 21. 

Nessa direção, Suely Rolnik sustenta que o fascismo, em suas forças reativas, pode ser compreendido como a despotencialização vital da presença do outro em mim. Como uma “fábrica mortífera de mundo” (Suely Rolnik, 2023, n.p) dedicada às forças reativas do fascismo, as plataformas on-line de sociabilidade, supostamente dedicadas à conexão, de modo paradoxal produzem hoje em dia justamente o contrário, ou seja, a “desconexão entre os corpos e os afetos por meio da “normalpatia” (denominada tanto como doença da normalidade quanto normalização da barbárie) sob o pressuposto “que o que conecta as pessoas é a semelhança, e não a diferença ou a aleatoriedade.” (Letícia Cesarino).1 

1 A antropóloga Letícia Cesarino faz tal afirmação a partir de uma entrevista concedida a Ana Druwe na publicação “Casa do Povo – Céu da Boca” (ano LXXV, 2023, n. 1023, p.44). 

Para Rolnik (2023), trata-se de dimensões da “peste fascista”. Para ela, é quando a palavra, a linguagem, dissocia-se da alma, como uma doença imanente ao “regime inconsciente colonial-racializante-patriarcal-capitalista”. 

A tomada de poder globalitário pelo capitalismo, em sua versão corporativa financeirizada neoliberal, deflagrou um novo surto dapeste fascista. A bactéria que causa esta doença é parte do microbioma do corpo social sob ao regime de inconsciente colonial-racializante-patriarcal-capitalista. A bactéria ativa-se quando a falta de oxigênio inerente ao ecossistema do regime em questão atinge limites insuportáveis. Deflagra-se então a peste, atingindo o desejo das massas e transformando os sujeitos num bando de zumbis, abduzidos pelo feitiço de relatos que distorcem a realidade. A sociedade brasileira é especialmente vulnerável à ativação desta bactéria, pelo fato deste país ser o único em que jamais foram desenvolvidos anticorpos sociais às suas variantes anteriores e tendo jamais sido punidos os responsáveis por sua ativação, desde sua cepa inicial: a cepa colonial-escravocrata. Porém, como em suas variantes anteriores, a bactéria não logra contaminar o conjunto do corpo social: surgem respostas que produzem anticorpos, logrando criar outros cenários. (Rolnik, 2023, n.p) 

  Comprometida com urgências políticas e com a reconexão dos corpos como construção da diversidade, as práticas artísticas que operam com as plataformas em rede tensionam o poder de “performatividade da imagem” (Baio, 2015, p. 15) algorítmica como capacidade de ver e analisar o mundo, tendo como princípio dar lugar a mundos silenciados. 

Por meio dos atravessamentos constituídos entre as imagens do mundo e as imagens da arte, em suas redes de relações com as plataformas sociais, nos fluxos comunicacionais em rede, como fluxos de poder, de consumo e do capitalismo globalizado, observamos, nas primeiras décadas do século 21, embates tanto da chamada “humanidade zumbi” (Krenak, 2019) quanto da chamada “peste fascista” (Rolnik, 2023), entre a esfera macropolítica e micropolítica, a partir da presença de práticas artísticas comprometidas com a reconexão dos corpos, como construção da diversidade, trazendo como princípio as noções de pluralidade, dissidência, redes de afetos, contato e alteridade, como inscrição de outras imagens, desejo de outros mundos e a constituição de uma Terra de gigantes, como a do artista Daniel Lima, de outros lugares de extremidades.