Christine Mello
Novembro 2024
Em um mundo em crise planetária, em tempos extremos, a abordagem das extremidades, por mim desenvolvida desde 2004, compreende um instrumental de leitura de obras artístico-midiáticas. Trata-se de atividade crítica decorrente da análise de processos culturais, artísticos e midiáticos bem como das relações estabelecidas entre eles, dando ênfase à produção não normativa, de índole experimental.
Em uma era associada a contínuos deslocamentos, à decomposição e à incerteza, a escrita da crítica é ativada por esse instrumental de leitura como experimento, na tentativa de produzir situações de risco no que diz respeito a leituras de trabalhos em trânsito, limítrofes e instáveis.
Para além da análise das relações entre arte e linguagens midiáticas, passei a adotar o entendimento de que, no contexto atual, marcado pela profunda crise do capitalismo global, ambiental e do Antropoceno, o signo das extremidades se faz presente no cotidiano concreto, não podendo ser considerado, portanto, um estado de exceção.
A partir do signo das extremidades, que prática da crítica é possível constituirmos diante de tal plano de realidade cotidiana?
Ampliei, desse modo, o campo de leitura da abordagem das extremidades para problemas contínuos da sociedade, no que diz respeito a esfera pública, aos agenciamentos coletivos e às intersecções entre o âmbito macropolítico e micropolítico, relacionados à decomposição e incerteza.
Em sua atualidade, a abordagem das extremidades procura questionar as epistemologias hegemônicas predominantes, colocando o foco das discussões de pesquisa nos fenômenos que suscitam outros atravessamentos. Implica, portanto, considerar um tipo de abordagem que descentraliza o pensamento predominante, frequentemente eurocêntrico e colonial.
Com o objetivo de contribuir para o debate sobre o estado da crítica relacionado às intersecções entre arte e práticas midiáticas, essa abordagem introduz, dessa forma, possíveis modos de leitura crítica na contemporaneidade.
Observa, para tanto, ações limítrofes entre as extremidades das linguagens e o extremo dos mundos, que possuem a capacidade de ressignificar, em especial, práticas relacionadas às redes audiovisuais, ao cinema, à performance e à arte contemporânea.
Não se trata de uma metodologia de análise, mas um jogo de leitura, que leva em conta processos intersubjetivos, em que o “leitor” entra em contato com a obra a partir das suas próprias vivências e deslocamentos, estabelecendo, com isso, processos descentralizados de posicionamento e implicação com a obra em análise.
A abordagem das extremidades elege, assim, a potência do negativo sob a forma de deslocamento do campo de observação para o lugar das extremidades, buscando, com isso, fazer com que o “leitor” tensione o objeto de um outro lugar, a fim de dar a ver o estado crítico da obra, suas problematizações e transversalidades.
Como um jogo de leitura, um processo de mediação e uma estratégia de lançar questões em torno ao objeto em análise, esta abordagem solicita ao “leitor” a quebra de referências estáveis no campo observacional, o deslocamento de posições hegemônicas para o lugar das extremidades, ativando, com isso, perguntas como: no âmbito da sociedade do século XXI, de que modo as extremidades acontecem na obra em análise, nas linguagens e na realidade social?
Como operador conceitual de leitura, oferece três vetores de análise baseados em procedimentos de ordem artístico-comunicacional: a desconstrução, a contaminação e o compartilhamento, que inferem a potência do negativo e, como pontas extremas, tensionam o objeto em análise, promovendo perguntas como: entre linguagens e mundos, o que está sendo desconstruído, contaminado e compartilhado no trabalho? De que modo?
Qual é a ética-estética-poética da condição das extremidades presente no trabalho em análise?
Com tais tipos de questões, este modo de abordar busca oferecer um instrumental de leitura capaz de posicionar o leitor crítico diante de estados de crise, instáveis, limítrofes e indeterminados, a partir dos quais as práticas das extremidades das linguagens e do extremo dos mundos coexistem e se fazem presentes.
A partir de tal experimento de leitura, posiciono como principal desafio pensar as extremidades como uma situação própria da vida, desafio esse que diz respeito a vivermos no instável, no inconstante, diante de uma sociedade organizada pelo ódio e pela desigualdade, por guerras ininterruptas, pela degradação do meio ambiente, pelas violências de raça, classe, gênero e sexo, pelas crises e polarizações, pelo ultraliberalismo, pela plataformização do capitalismo, pelo capitalismo cognitivo, pelos sistemas algorítmicos e pela inteligência artificial, nos agenciamentos humanos e não humanos, nos neofascismos, nos deslocamentos e tensionamentos extremos em que a experiência vital se movimenta na atualidade, que exigem quebras de paradigmas e ressignificações.
Não se trata, portanto, de um tipo de instrumental de leitura em desconexão com a violência patriarcal, colonial, ambiental, racial, de gênero e sexo. Trata-se de abordar, de forma inter-relacionada, uma discussão que não dissocia a realidade do objeto em análise, não o separa, não o torna específico. Ao contrário, ao perguntar “que lugar de extremidade é esse?”, tem como ponto de partida da criação da análise a ideia de crítica conectada com o seu entorno, aberta para leituras indeterminadas, assim como as desconstruções, contaminações e compartilhamentos dos regimes ético-estético-poéticos das extremidades presentes em tais realidades.
Diante da abertura à pluralidade de seus modos de observação, por meio de estudos de casos e leituras críticas, a abordagem das extremidades diz respeito, dessa maneira, à produção de análises com as extremidades e não sobre elas.
O termo “extremidade” utilizado para a criação desse conceito operacional de leitura é derivado da medicina milenar chinesa e de seus métodos terapêuticos, como a acupuntura, a reflexologia e o Do-In. Na perspectiva oriental, “as extremidades do corpo possuem a habilidade de nos colocar em contato e nos fazer apreender simultaneamente os órgãos do corpo de forma descentralizada e interligada” (Mello, 2017a, p. 14). Acionam, portanto, uma rede de relações na análise de linguagens e práticas interconectadas em um mesmo organismo, processo, obra e sistema-mundo.
Ao longo dos vinte anos (2004-2024) em que vem sendo construída, a abordagem das extremidades busca contribuir com o campo dos instrumentais de análise, produzindo aproximações críticas com os regimes ético, estético e poético das experiências das extremidades, relacionados às intersecções de práticas artísticas, midiáticas e políticas com a vida. Tem, para tanto, como princípio, três dimensões de atuação inter-relacionadas: 1) o campo observacional das extremidades; 2) o operador conceitual das extremidades; e 3) os procedimentos das extremidades desconstrução, contaminação e compartilhamento.
O pensamento das extremidades articulado segundo essa abordagem relaciona campos não oponentes, mas complementares. É utilizado como atitude de deslocamento do campo observacional. Diz respeito a pensar a partir de um lugar descentralizado, tensionado, como zonas-limite, interconectadas em diversas práticas culturais, artísticas e midiáticas da atualidade.
Nesse contexto, a leitura das práticas culturais, artísticas e midiáticas implica posicionar a análise das obras esteticamente de um outro lugar. Em nosso caso, diz respeito a observá-las por meio do pensamento das extremidades, nos deslocamentos e tensionamentos existentes entre a esfera das linguagens em seus estados limítrofes e o extremo dos mundos e realidades, tendo como pressuposto destacar as ressignificações que produzem.
Nos estudos vigentes da abordagem das extremidades, é possível encontrar, portanto, articulações da “potência viva dos atravessamentos do mundo” (Mello, 2023, p. 29) com a noção de “extremo dos mundos”, a partir da qual opero hoje em dia esse recorte analítico.
Como experimento crítico, trata, em especial, de possíveis caminhos para o exercício da crítica das redes audiovisuais, de cinema, da performance, de arte, entre outros lugares da crítica atual que buscam falar de práticas em crise, atravessadas por procedimentos comunicacionais, artísticos e conceituais como os da desconstrução, contaminação e compartilhamento. Desde 2019, os conceitos relacionados à abordagem das extremidades estruturam também as sessões, os conteúdos e a linguagem da plataforma digital Extremidades (https://www.extremidades.art) e da PLATAFORMA EXTREMIDADES: Uma política de pesquisa em rede (https://www.extremidades.art/plataforma-de-pesquisa/).
Figura 1: Capa do livro Extremidades do Vídeo (Fonte: Christine Mello, 2008).
Figura 2: Capa do livro Diálogos transdisciplinares: arte e pesquisa (Fonte: Livro organizado por Gilbertto Prado, Monica Tavares e Priscila Arantes, 2016).
Figura 3: Capas dos livros Extremidades Experimentos Críticos do Selo – Coleção Extremidades. (Fonte: Arquivo Extremidades, 2024)
Figura 4: Reprodução da tela inicial da Plataforma Extremidades Online do Grupo de Pesquisa Extremidades.
(Fonte: www.extremidades.art)
Figura 5: Reprodução da tela inicial da Plataforma Pesquisa do Grupo de Pesquisa Extremidades. (Fonte: www.extremidades.art/plataforma-de-pesquisa).