Abordagem das extremidades
Christine Mello
Outubro 2024
Agradecimentos especiais
PUC-SP/PPGCOS:
Ana Claudia Mei Alves (Coordenação de Linha de Pesquisa),
aos meus orientandos e ao
Grupo de Pesquisa Extremidades: redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea.
FAPERJ / UERJ / PPGARTES:
Sheila Cabo Geraldo (Supervisão de Pós doc)
Luiz Cláudio da Costa (interlocução e diálogo crítico)
Esta escrita é parte integrante de uma investigação maior, desenvolvida a partir da Bolsa PAPD (2022-2024) concedida pela Fundação Carlos Chagas/FAPERJ, sob a forma de pesquisador convidado e do intercâmbio interinstitucional entre a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, em seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (Linha de Pesquisa Regimes de sentido nos processos comunicacionais) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, em seu Programa de Pós-Graduação em Artes/PPGArtes (Linha de Pesquisa Arte, imagem e escrita), sob a forma de Pós-Doutorado, com supervisão de Sheila Cabo Geraldo.
Em um mundo em crise planetária, em tempos extremos, a abordagem das extremidades, por mim desenvolvida junto ao PPGCOS da PUC-SP desde 2004, compreende atividade crítica decorrente da análise de processos culturais, artísticos e midiáticos bem como das relações estabelecidas entre eles, dando ênfase à produção experimental. Nesse contexto, tem como princípio observar ações limítrofes entre as extremidades das linguagens e o extremo dos mundos, que possuem a capacidade de ressignificar, em especial, práticas relacionadas às redes audiovisuais, ao cinema, à performance e à arte contemporânea.
Com o objetivo de contribuir para o debate sobre o estado da crítica relacionado às intersecções entre arte e práticas midiáticas, essa abordagem introduz possíveis modos de leitura crítica na contemporaneidade.
Em uma era associada a contínuos deslocamentos, à decomposição e à incerteza, a escrita da crítica é ativada por esse instrumental de leitura como experimento, na tentativa de produzir situações de risco no que diz respeito a leituras de trabalhos em trânsito, limítrofes e instáveis.
Como um jogo de leitura, um processo de mediação e uma estratégia de lançar questões em torno ao objeto em análise, esta abordagem solicita ao leitor a quebra de referências estáveis no campo observacional, o deslocamento de posições hegemônicas para o lugar das extremidades, ativando, com isso, perguntas como: no âmbito da sociedade do século XXI, de que modo as extremidades acontecem na obra em análise, nas linguagens e na realidade social?
Como operador conceitual de leitura, oferece três vetores de análise baseados em procedimentos de ordem comunicacional: a desconstrução, a contaminação e o compartilhamento, que inferem a potência do negativo e, como pontas extremas, tensionam o objeto em análise, promovendo perguntas como: o que está sendo desconstruído, contaminado e compartilhado no trabalho? De que modo?
Qual é a ética-estética-poética da condição das extremidades presente no trabalho em análise?
Com tais tipos de questões, este modo de abordar busca oferecer um instrumental de leitura capaz de posicionar o leitor crítico diante de estados de crise, instáveis, limítrofes e indeterminados, a partir dos quais as práticas das extremidades das linguagens e do extremo dos mundos coexistem e se fazem presentes.
A partir de tal experimento de leitura, posiciono como principal desafio pensar as extremidades como uma situação própria da vida, desafio esse que diz respeito a vivermos no instável, no inconstante, diante de uma sociedade organizada pelo ódio e pela desigualdade, por guerras ininterruptas, pela degradação do meio ambiente, pelas violências de raça, classe, gênero e sexo, pelas crises e polarizações, pelo ultraliberalismo, pela plataformização do capitalismo, pelo capitalismo cognitivo, pelos sistemas algorítmicos e pela inteligência artificial, nos agenciamentos humanos e não humanos, nos neofascismos, nos deslocamentos e tensionamentos extremos em que a experiência vital se movimenta na atualidade, que exigem quebras de paradigmas e ressignificações.
Na passagem para os anos 2000, como um tipo de instrumental crítico, sob a forma de tese de doutorado (defendida em 2004, junto ao PPGCOS da PUC-SP, sob orientação do Prof. Dr. Arlindo Machado), desenvolvi uma leitura das extremidades com o objetivo de promover reflexões entre o campo da arte e do vídeo. Essa leitura foi transformada, na sequência, no livro Extremidades do vídeo (publicado em 2008, pela Editora Senac São Paulo). O livro integra, desde então, bibliografias de cursos de Comunicação e Artes tanto em programas de graduação como em pós-graduações, incluindo a PUC-SP e outras instituições universitárias, alcançando, com isso, uma abrangência nacional.
Figura 1: Capa do livro Extremidades do Vídeo (Fonte: Christine Mello, 2008).
Em 2014, ao passar a integrar o quadro docente do PPGCOS da PUC-SP, fui orientada pela minha coordenadora da linha de pesquisa Regimes de Sentido nos Processos Comunicacionais, a Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves, a redimensionar a abordagem das extremidades para um campo de ação ampliado, com o objetivo de promover tanto um lugar de pesquisa como estabelecer um instrumental de análise para as orientações de mestrado e doutorado. Nessa época, divulguei tal redimensionamento junto ao evento “Diálogos transdisciplinares: arte e pesquisa”, promovido pelo PPGAV da Escola de Comunicações e Artes da USP, sob a forma de seminário (2015) e livro (2016), organizados por Gilbertto Prado, Monica Tavares e Priscila Arantes, com o título Extremidades: leituras entre arte, comunicação e experiência contemporânea.
Figura 2: Capa do livro Diálogos transdisciplinares: arte e pesquisa (Fonte: Livro organizado por Gilbertto Prado, Monica Tavares e Priscila Arantes, 2016).
Para além da análise das relações entre arte e linguagens midiáticas, passei a adotar o entendimento de que, no contexto atual, marcado pela profunda crise do capitalismo global, ambiental e do Antropoceno, o signo das extremidades se faz presente no cotidiano concreto, não podendo ser considerado, portanto, um estado de exceção.
Ampliei, assim, o campo de leitura da abordagem das extremidades para problemas contínuos da sociedade, no que diz respeito a esfera pública, aos agenciamentos coletivos e às intersecções entre o âmbito macropolítico e micropolítico, relacionados à decomposição e incerteza.
Tais tipos de problemas colocam em xeque a democracia por meio das formas vigentes da desigualdade social, discriminação racial, de gênero e sexualidade, assim como a crise do Antropoceno, apontando, com isso, não apenas a necessidade de reconfigurações e mudanças políticas no século XXI, como também a ressignificação de condições de vida e de linguagens.
Sob a forma de uma abordagem associada à realidade de linguagens e mundos nas extremidades, está em sintonia com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), em especial, Igualdade de Gênero (ODS 05), Redução das Desigualdades (ODS 10) e Ação Contra Mudança Global do Clima (ODS 13), ressaltando, nesse contexto, o papel dos regimes de sentido e dos processos comunicacionais em suas intersecções com as práticas artísticas e midiáticas.
Desse modo, reexaminar essa abordagem junto ao PPGCOS da PUC-SP, nos últimos dez anos (2014 – 2024), significa abri-la para uma maior complexidade e para uma crítica ao poder colonial, encontrando, no exame atento da desestabilização das linguagens artísticas e midiáticas, formas limítrofes, fronteiriças, múltiplas e ressignificadas de produção imaginária.
Em sua atualidade, a abordagem das extremidades procura questionar as epistemologias hegemônicas predominantes, colocando o foco das discussões de pesquisa nos fenômenos que suscitam outros atravessamentos. Implica, portanto, considerar um tipo de abordagem que descentraliza o pensamento predominante, frequentemente eurocêntrico e colonial.
Não se trata, portanto, de um tipo de instrumental de leitura em desconexão com a violência patriarcal, colonial, ambiental, racial, de gênero e sexo. Trata-se de abordar, de forma inter-relacionada, uma discussão que não dissocia a realidade do objeto em análise, não o separa, não o torna específico. Ao contrário, ao perguntar “que lugar de extremidade é esse?”, tem como ponto de partida da criação da análise a ideia de crítica conectada com o seu entorno, aberta para leituras indeterminadas, assim como as desconstruções, contaminações e compartilhamentos dos regimes ético-estético-poéticos das extremidades presentes em tais realidades.
Diante da abertura à pluralidade de seus modos de observação, por meio de estudos de casos e leituras críticas, a abordagem das extremidades diz respeito, dessa maneira, à produção de análises com as extremidades e não sobre elas.
Segundo essa abordagem, estar situado nas extremidades implica deslocamento de posição no campo observacional, tensionamento com o objeto de análise, coexistência e complementaridade entre as extremidades das linguagens e o extremo dos mundos, bem como ativação de processos de outra natureza comunicacional, produzindo um contato ampliado e um tipo de jogo de leitura que destaca procedimentos comunicacionais como os da desconstrução, contaminação e compartilhamento.
Portanto, a abordagem das extremidades é utilizada, hoje em dia, junto às pesquisas do PPGCOS da PUC-SP, na observação de fenômenos que questionam a colonialidade de saberes e poderes, ao deslocar a atenção para uma posição descentralizada, instável, nas extremidades, na desconstrução de epistemologias hegemônicas, na contaminação com problemas de raça, gênero, classe, sexualidade e meio ambiente, e no compartilhamento de experiências interconectadas entre múltiplas plataformas, comunidades, linguagens e espaços sociais.
A abordagem das extremidades embasa teoricamente o Grupo de Pesquisa Extremidades: Redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea, por mim liderado, integrante do PPGCOS da PUC-SP, cuja formação data de 2014 e que desde então acolheu a pesquisa de cerca de cinquenta estudantes (entre mestrandos e doutorandos) e pós-doutorandos.
A partir do trabalho com essa abordagem, foram produzidos três livros da Coleção Extremidades (https://www.extremidades.art/colecao-extremidades/), sob a forma de coletânea de textos formados por artigos de um conjunto expressivo de autores/pesquisadores que integram as pesquisas do grupo: Extremidades: experimentos críticos – redes audiovisuais, cinema, performance, arte contemporânea (2017, impresso, e 2021, e-book); Extremidades: experimentos críticos – redes audiovisuais, cinema, performance, arte contemporânea 2 (2022, e-book, e 2023, impresso) e Extremidades: experimentos críticos – redes audiovisuais, cinema, performance, arte contemporânea 3 (2024, e-book, e impresso, no prelo). Outros livros estão em desenvolvimento junto à Coleção, aguardando por publicação em 2025.
Figura 3: Capas dos livros Extremidades Experimentos Críticos do Selo – Coleção Extremidades. (Fonte: Arquivo Extremidades, 2024)
A Coleção Extremidades possui um Conselho Científico, por mim coordenado, com aproximadamente vinte colaboradores (que atuam como avaliadores, pareceristas e convidados-palestrantes em eventos relacionados ao grupo), formado por teóricos, críticos, curadores, artistas e professores, que integram variadas instituições acadêmicas brasileiras como UERJ, UFRGS, USP, UNICAMP, UFJF, FAAP, PUC-Campinas e PUC-SP, assim como instituições acadêmicas internacionais como UBA (Universidad de Buenos Aires), FUC (Universidad del Cine de Buenos Aires) e UCSC (Universidade da Califórnia¸ Santa Cruz).
A Coleção Extremidades tem também um Conselho Editorial que conta com a minha coordenação, editoria-chefe de Fernanda Oliveira, produção editorial de Claudio Filho, gestão cultural de Ana Rovati, preparação e revisão de texto de Cristiane B. Futagawa [Sushi], experimento, direção de arte e projeto gráfico de João Simões assim como design gráfico de João Simões, Natalli Tami Kussunoki e Claudio Filho.
Desde 2019, os conceitos relacionados à abordagem das extremidades estruturam também as sessões, os conteúdos e a linguagem da plataforma digital Extremidades (https://www.extremidades.art) e da PLATAFORMA EXTREMIDADES: Uma política de pesquisa em rede (https://www.extremidades.art/plataforma-de-pesquisa/).
Figura 4: Reprodução da tela inicial da Plataforma Extremidades Online do Grupo de Pesquisa Extremidades. (Fonte: www.extremidades.art)
Figura 5: Reprodução da tela inicial da Plataforma Pesquisa do Grupo de Pesquisa Extremidades. (Fonte: www.extremidades.art/plataforma-de-pesquisa).
Contando com aproximadamente vinte e cinco pesquisas defendidas (https://www.extremidades.art/grupo/dissertacoes-e-teses/) até o momento (entre dissertações de mestrado e teses de doutorado) que utilizam a abordagem das extremidades como instrumental de leitura, ela tem demonstrado, ao longo das últimas décadas (2000, 2010 e 2020), ser capaz de formular possíveis caminhos para o exercício da crítica das redes audiovisuais, de cinema, da performance, de arte, entre outros lugares da crítica atual que buscam falar tanto de práticas ético-estético-poéticas e contextos sociais em crise quanto de ações limítrofes entre linguagens.
Em 2024, essa abordagem crítica completa vinte anos: de sua fase introdutória (a partir de 2004) à sua fase mais recente (desde 2014). Com a atual fase de investigação – Das extremidades das linguagens ao extremo dos mundos –, busco, portanto, dar maior visibilidade aos processos de transmutação desse instrumental de análise, de um arco de tempo compreendido como sendo o das extremidades das linguagens para o tempo presente que inclui análises do espaço social em suas relações com a experiência contemporânea sob a forma de o extremo dos mundos em seus jogos de leitura. Significa pensar a possibilidade de instaurar uma nova fase de atuação, com novos desafios e ressignificações, como uma nova dobra ou virada de leitura, alcançando um outro redimensionamento das estratégias de trabalho.
A partir do signo das extremidades, que prática da crítica é possível constituirmos diante de tal plano de realidade cotidiana?
Partindo de uma perspectiva que envolve, simultaneamente, as esferas ética, estética e poética, a investigação, com base na noção de extremidades, visa contribuir para as teorias da arte e da mídia ao desenvolver uma abordagem que permite se posicionar criticamente em meio a um mundo em constante crise, instabilidade e vulnerabilidade.
A noção de extremidades é direcionada, enquanto “caminho de leitura”, à observação de pontos de tensão, situações conflituosas existentes no cerne dos trabalhos em análise. Como um jogo de leitura, um processo de produção de relações e uma estratégia de lançar questões em torno do objeto de análise, solicita ao leitor a quebra de referências estáveis no campo observacional, o deslocamento de posições hegemônicas para o lugar das extremidades, ativando, com isso, uma questão fulcral contemporânea: diante das extremidades da vida, das linguagens e do extremo dos mundos, como se posicionar para uma leitura crítica?
O pensamento das extremidades articulado segundo essa abordagem relaciona campos não oponentes, mas complementares. É utilizado como atitude de deslocamento do campo observacional. Diz respeito a pensar a partir de um lugar descentralizado, tensionado, como zonas-limite, interconectadas em diversas práticas culturais, artísticas e midiáticas da atualidade.
O termo “extremidade” utilizado para a criação desse conceito operacional de leitura é derivado da medicina milenar chinesa e de seus métodos terapêuticos, como a acupuntura, a reflexologia e o Do-In. Na perspectiva oriental, “as extremidades do corpo possuem a habilidade de nos colocar em contato e nos fazer apreender simultaneamente os órgãos do corpo de forma descentralizada e interligada” (Mello, 2017a, p. 14). Acionam, portanto, uma rede de relações na análise de linguagens e práticas interconectadas em um mesmo organismo, processo, obra e sistema-mundo.
Ao longo dos vinte anos (2004-2024) em que vem sendo construída, a abordagem das extremidades busca contribuir com o campo dos instrumentais de análise, produzindo aproximações críticas com os regimes ético, estético e poético das experiências das extremidades, relacionados às intersecções de práticas artísticas, midiáticas e políticas com a vida. Tem, para tanto, como princípio, três dimensões de atuação inter-relacionadas: 1) o campo observacional das extremidades; 2) o operador conceitual das extremidades; e 3) os procedimentos das extremidades desconstrução, contaminação e compartilhamento.
Tendo como referência o filósofo Jacques Rancière [Argélia, 1940], em seu livro A partilha do sensível (2005), adoto o termo práticas para me referir aos campos da cultura, arte, mídia e política em um sentido mais amplo, no interesse de reconhecê-los em suas formas relacionais com a natureza dos atos em suas esferas ética, estética e poética. Segundo Rancière, esse termo diz respeito a entrar em contato com as formas de visibilidade de tais práticas, com o lugar que ocupam e com suas “maneiras de fazer”. Ou seja, nas análises das extremidades, trata-se de priorizar as relações entre os efeitos que produzem com “as posições dos corpos no espaço comum” (Rancière, 2005, p. 17).
Em diálogo continuado com Rancière, em seu livro O destino das imagens (2012), adoto o termo regime estético das artes, que, em suas palavras, é utilizado para as práticas de arte em sua recusa da “separação entre um mundo dos fatos próprios da arte e um mundo dos fatos comuns” (p. 133).
Nesse contexto, a leitura das práticas culturais, políticas, artísticas e midiáticas implica posicionar a análise das obras esteticamente de um outro lugar. Em nosso caso, diz respeito a observá-las por meio do pensamento das extremidades, nos deslocamentos e tensionamentos existentes entre a esfera das linguagens em seus estados limítrofes e o extremo dos mundos e realidades, tendo como pressuposto destacar as ressignificações que produzem.
Nos estudos vigentes da abordagem das extremidades, é possível encontrar, portanto, articulações da “potência viva dos atravessamentos do mundo” (Mello, 2023, p. 29) com a noção de “extremo dos mundos”, a partir da qual opero hoje em dia esse recorte analítico.
Como experimento crítico, trata, em especial, de possíveis caminhos para o exercício da crítica das redes audiovisuais, de cinema, da performance, de arte, entre outros lugares da crítica atual que buscam falar de práticas em crise, atravessadas por procedimentos comunicacionais, artísticos e conceituais como os da desconstrução, contaminação e compartilhamento.
A abordagem das extremidades tem como objetivo principal proporcionar instrumental de análise levando em conta critérios éticos, estéticos e poéticos, experimentações materiais, trânsitos entre linguagens, gestos expressivos, materialidades dos meios e ativações dos processos de subjetivação. Articula, para tanto, as desconstruções dos fenômenos em análise, as redes de afetos, os processos de produção de corpo e alteridade, as contaminações vibráteis com o mundo e a partilha comum, o compartilhamento, evidenciando modos emergentes pelos quais as dimensões das extremidades, em análise, estão presentes tanto nas articulações singulares do objeto de estudo com o seu espaço social, ao redor, quanto nos arranjos das linguagens e nas ressignificações poéticas. Sob a abordagem das extremidades (Mello, 2004, 2008, 2016, 2017 e 2023), procedimentos comunicacionais, operatórios e conceituais como os da desconstrução, contaminação e compartilhamento são propostos como caminho e jogo de leitura.
Trata-se de compreender este tipo de abordagem como um processo de leitura, um jogo de leitura ou um caminho de leitura em direção à compreensão simultânea das ações limítrofes entre linguagens e mundos, realidades em conflito, em tensionamento, situadas a partir da noção de extremidades (Mello, 2017; Mello, 2023); de “constituir instrumentais de análise para trabalhos que transitam entre arte, práticas midiáticas e experiência contemporânea, interconectados entre múltiplas plataformas, comunidades e linguagens” (Mello, 2017a, p. 13).
Figura 6: Desenho ilustrativo da criação do conceito operacional extremidades no sentido ocidental (Imagem: Fernanda Oliveira, 2024).
Figura 7: Desenho ilustrativo da criação do conceito operacional extremidades no sentido oriental. (Imagem: Fernanda Oliveira, 2024).
De modo mais específico, nesse tipo de abordagem são articulados os procedimentos da desconstrução, contaminação e compartilhamento como “vetores de leitura, ou pontas extremas, presentes nos trabalhos em análise, que possuem a capacidade de ativar processos de subjetivação e ressignificar linguagens” (Mello, 2017a, p. 13).
Com tais procedimentos, a noção de extremidades é embasada em direção aos modos como se constituem os processos de experimentação e se elaboram os planos de materialidade, sendo possível, com eles, tomar contato, de forma mais direta, com os pontos de tensão e as situações conflituosas diante dos regimes de sentido, presença e coletividade das formas, relações e imagens.
Para além de buscar contribuir para o debate sobre as desconstruções, contaminações e compartilhamentos entre práticas artísticas e midiáticas numa sociedade algorítmica, passei a ampliar o campo da abordagem das extremidades para problemas contínuos da esfera pública relacionados ao extremo dos mundos, à decomposição e incerteza, apontando não apenas a necessidade de reconfigurações e mudanças políticas no século XXI, como também a ressignificação de condições de vida e de linguagens.
A investigação é ressignificada, desse modo, a partir da busca por análises que façam frente às formas vigentes da experimentação artística e midiática, tendo como problematizações a violência colonial, a discriminação racial, de gênero e sexo, assim como os limites estruturais tecnológicos e os impactos do Antropoceno, que se opõem à diversidade no sistema-mundo contemporâneo.
Esse é o caso de Odiolândia (2017), da artista, curadora e pesquisadora Giselle Beiguelman [São Paulo, 1962], que tomou como base para a criação do trabalho as ações da Prefeitura de São Paulo na região conhecida como Cracolândia, composta, na sua maioria, por dependentes químicos de crack em situação de rua e traficantes. Desde o início dos anos 2000, uma série de políticas públicas vem se implantando, na maior parte das vezes de forma higienista. Entre elas, o programa social Redenção, criado na gestão do ex-prefeito João Dória, no ano de 2017, que contou com violenta intervenção policial.
Figura 8: Sequência de imagens que apresentam as ações policiais e políticas na região da Cracolândia na capital do estado de São Paulo em 2017. (Fonte: 1. Souza, 2017; 2. Rodrigues, 2017; 3.Estadão Conteúdo, 2017).
Para realizar Odiolândia, Beiguelman reuniu comentários escritos publicados nas redes sociais sobre as ações de Dória na Cracolândia entre 21 de maio e 9 de junho de 2017, somados aos áudios de vídeos postados na internet pelos próprios agentes de segurança do Estado. A artista elaborou o título do trabalho a partir do teor de ódio das mensagens postadas. Odiolândia é apresentado sob a forma iconoclasta de um vídeo sem imagens, em que “os comentários são apresentados na sua forma bruta, sem correções gramaticais ou adequações de estilo” (Beiguelman, 2017).
Entre a realidade do espaço físico, tradicional, da cidade de São Paulo e o espaço virtual das redes sociais, Odiolândia apresenta o trânsito entre imagens de fim do mundo constitutivas da vida pública, cujos cidadão enxergam os dependentes químicos como “o inimigo”. Face à sua radical alteridade, acabam sendo excluídos e/ou exterminados pelo outro. São imagens de ódio sob a forma de racismo, xenofobia e desigualdade social. Revelam uma sociedade definida pela separação e que, em tais ambientes das plataformas sociais, não se conecta com a diferença. São situações em que predomina o autoritarismo por meio de valores mortíferos e destrutivos em relação ao outro. Nessa direção, para Luiz Valério Trindade:
Discurso de ódio se caracteriza pelas manifestações de pensamentos, valores e ideologias que visam inferiorizar, desacreditar e humilhar uma pessoa ou um grupo social, em função de características como gênero, orientação sexual, filiação religiosa, raça, lugar de origem ou classe. Tais discursos podem ser manifestados verbalmente ou por escrito, como tem sido cada vez mais frequente nas plataformas de redes sociais. Sendo assim, é possível compreender que discursos de cunho racistas veiculados nas redes sociais (sejam eles de forma explícita e sem maquiagens, ou camuflados em piadas) se enquadram na categoria de discursos de ódio. (Trindade, 2022, p. 17)
Figura 9: Registro do trabalho Odiolândia, de 2017, da artista Giselle Beiguelman, um vídeo que reuniu comentários publicados nas redes sociais sobre as ações da Prefeitura de São Paulo e do Governo do Estado na Cracolândia. (Fonte: Beiguelman, 2017: http://www.desvirtual.com/portfolio/odiolandia-hateland/)
Não faço aqui uma análise crítica do trabalho em si, tema de outro texto a ser em breve desenvolvido. Minha contribuição, neste momento, é levantar uma reflexão: como a obra faz o extremo dos mundos acontecer? Considerando essa sociedade da inimizade e as crises ambiental, econômica e política que a assolam, de que modo tais dimensões de mundo presentes em Odiolândia refletem tanto uma crise da “ideia de humanidade” (Krenak, 2019, p. 11) quanto uma “subjetividade contemporânea produzida na dobra financeirizada do capitalismo” (Rolnik, 2021, p. 22), no caso, nas plataformas sociais?
Em Odiolândia, Giselle Beiguelman desloca as “experiências das extremidades” (Mello, 2017b, p. 22-34) das ações limítrofes entre linguagens em suas articulações com as redes audiovisuais, o cinema, a performance e a arte contemporânea para os atravessamentos do real “nos processos de produção de corpo, pensamento, arte e linguagens emergentes” (Mello, 2023, p. 27) em situações limítrofes da vida.
Considerando a ubiquidade das linguagens digitais associada à esfera das mídias sociais, é possível observar, com Odiolândia, que os agenciamentos de mundos apresentam aspectos da dataficação social por meio do avanço do autoritarismo e da cultura do ódio, próprios às forças destrutivas de um mundo em decomposição. O mesmo ocorre com a experiência da imagem: circulando por toda parte, entre os efeitos do algoritmo e as posições dos sujeitos na esfera do comum, seus usos induzem ao consumo, apropriando-se tanto das forças vitais quanto mortíferas das redes para se constituir como expressão e presença de mundo.
É desse lugar que observamos o contra-ataque que a arte produz com as mídias sociais diante do imaginário racista, xenófobo e sexista nelas agenciados, como estratégia crítica, como ato de imaginar a existência de maneira diferente, como o reconhecimento recíproco da vulnerabilidade. Compreendemos, portanto, a arte não em suas especificidades, mas em tudo aquilo que lhe é impróprio, impedindo-a de se “individualizar enquanto tal” (Rancière, 2005, p. 29).
Comprometida com urgências políticas e com a reconexão dos corpos como construção da diversidade, as práticas artísticas e midiáticas que operam com as plataformas em rede tensionam o poder de “performatividade da imagem” (Baio, 2015, p. 15) algorítmica como capacidade de ver e analisar o mundo, tendo como princípio dar lugar a mundos silenciados.
Nesses tensionamentos, práticas artísticas como Odiolândia, em suas relações com as práticas midiáticas, respondem como um agente ativo capaz de ressignificar o sentido eco-político das imagens do mundo no século XXI, como força vital que anima, reconecta o corpo com o outro e faz vibrar. Oferecem, portanto, representações, performances e experiências diversas de mundo, assim como nosso lugar nele.
Das extremidades das linguagens, partindo de um jogo de leitura aberto ao indeterminado, permeado por gestos descentralizados, a abordagem das extremidades diz respeito a oferecer procedimentos de análise como os da desconstrução, contaminação e compartilhamento, que buscam constituir tensionamentos no campo observacional contrários às forças hegemônicas e, em seu estado atual de ampliação, revelar dimensões heteróclitas e plurais diante de práticas artísticas e midiáticas naquilo que é possível considerar como próprio ao extremo dos mundos.
Com esse deslocamento metodológico do campo observacional, a presente abordagem convoca as atenções do leitor ao que é próprio à “experimentação nas extremidades”. A temática da experimentação material é aqui observada tomando como princípio a interrelação entre esses três procedimentos, que devem ser observados como um tipo de ação ética-estética-poética descentralizada, em que a potência das linguagens e mundos tem lugar a partir da ampliação das formas de contato entre realidades diversas e plurais.
Com a abordagem das extremidades aplicada às problematizações das extremidades das linguagens e do extremo dos mundos, é possível observar que as práticas artísticas e midiáticas possuem o poder de afetar, desconstruir, contaminar e compartilhar irreversivelmente as linguagens e também os mundos em diálogo, gerando, com isso, não apenas diversidade e pluralidade de potencialidades poéticas, mas também uma política da arte e da mídia.
Tal tipo de política da arte e da mídia convoca para o deslocamento do campo de observação em direção às extremidades, com o objetivo de fazer as práticas artísticas e midiáticas falarem com o mundo em sua dessemelhança, propiciando, simultaneamente, presença sensível do mundo, experiência de mundo e crítica aos extremos dos mundos que habitamos na contemporaneidade.
Referências
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ESTADÃO CONTEÚDO. Após operação na Cracolândia, vizinhança teme volta de usuários. Exame, 11 jun. 2017. Disponível em: https://exame.com/brasil/apos-operacao-na-cracolandia-vizinhanca-teme-volta-de-usuarios/. Acesso em: 14 set. 2024.
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